Algumas* experiências comuns com a Ayahuasca

*Mas não todas. Encare este texto como uma dentre infinitas possibilidades de coisas que o chá pode mostrar para você. Tenha em mente que notou-se que todos que descrevem textualmente as experiências sentem que algo (o mais importante) se perdeu na transposição: nesse quesito, os artistas – como os músicos, os poetas, pintores (como Pablo Amaringo e Alex Grey) etc. – são os que melhor conseguem exprimir algo da vivência que é por si só indizível, inefável.

O chá pode começar ter algum efeito rapidamente após a ingestão, mas geralmente eles se tornam muito perceptíveis após cerca de 40 a 90 minutos (seja de uma primeira ou segunda dose) – há relatos, porém, de efeitos claros a partir de 20 minutos -, e duram geralmente de 3 a 4 horas. Em geral o indivíduo permanece com a consciência desperta por todo esse tempo (não “apaga”).

Borracheira: do espanhol borrachera (embriaguez), é o transe provocado pelo chá, cujas qualidade e quantidade (entre outros fatores) podem torná-lo mais ou menos intenso e profuso de ricas visões.

Enjoos fazem-se sentir quando a borracheira se aproxima, e a limpeza do corpo pelo vômito, sudorese e ou evacuação costuma preceder e proporcionar uma intensificação das visões. A função dessas limpezas é exatamente purgar, deixar o organismo e logo a mente mais puros para que a pessoa possa adentrar nos domínios mais sutis da percepção.

Com experiência e adequação da atitude e dieta na vida cotidiana, bem como com a observação mais precisa dos jejuns e restrições prévios, essas purgações podem se atenuar.

Ao fazer efeito, o chá atua como se tocasse ou chacoalhasse a mente e assim começa a desarticular todas as percepções ordinárias que ela coleta e integra dos (outros) cinco sentidos, atenuando seus aspectos sensório e analítico para a experiência. Por isso, quanto mais apego às formas sensoriais e menos a pessoa acredita em algo mais além do mundo objetivo, mais difícil tende a ser a experiência pois, apegada à mente, ela vai querer lutar contra os outros tipos de percepções que estão para se apresentar, e isso pode lhe ser um tormento. Essa pessoa tomou uma atitude paradoxal e contraditória: ingeriu uma substância que reduz a atividade de sua mente e seu ego e ao mesmo tempo quer lutar com eles para “não perder o controle mental” da situação. Uma atitude cética ou de dúvida é bem-vinda, mas uma atitude revestida da presunção, seja da ciência moderna ou mesmo de alguma religião, pode instalar um conflito no indivíduo quando novos conceitos ou até realidades se apresentarem.

A libertação de nossa alma prisioneira somente será possível se tivermos coragem de descer aos nossos próprios infernos. Traduzindo: ninguém se torna um homem de verdade se não tiver a coragem de enfrentar, e superar, seu próprio inferno, que nada mais é do que a coragem de enfrentar o autoconhecimento.

Por Viktor D. Salis, em A Arte de Viver, faixa 13, min. 5.

Nas visões do chá, a pessoa pode ter a sensação ou se ver em uma situação simbólica (pois aqui não é um presságio) de morte ou aniquilamento – da sua mente, do seu ego, do que ela considerava o eu – que, quanto menor abertura para a realidade espiritual ela tiver, maior será o seu desespero e sofrimento.

Assim, uma pessoa convictamente “materialista”, a saber, para a qual o fenômeno mente e a percepção do espírito não são mais do que emanações da autopercepção cerebral, seria melhor preparada se permitisse mesmo o artifício da dúvida, tão necessário ao buscador e ao cientista, mas às vezes escondido sob a poeira dos dogmas, espirituais e científicos.

Então, para o contato com esta medicina ancestral, despoje-se de seus pré-julgamentos e conhecimentos morais, espirituais, científicos e culturais – quanto mais conseguir isso, mais poderá aprender (sobretudo sobre si mesmo), uma vez que não irá forçar um encaixotamento da experiência em seus conhecimentos prévios, ao menos durante a sua ocorrência; após, caberá a você permitir que a mente analítica retome o comando de seu ser, tratando de aplicar seus antigos conceitos – religiosos e científicos – e negações dessa realidade há pouco vivenciada, OU devolver a autoridade da sua vida ao seu Ser, utilizando sim a mente, mas como uma exímia funcionária ou ferramenta, e não mais como dona de seu ser.

As capacidades tanto intuitivas como da mente analítica devem aumentar após o uso do chá.

Os Kaxinawá referem-se à mente eu seus cânticos como uma “pobre consciência sofredora”. (Barbara Keifenheim, O uso ritual da Ayahuasca, p. 116) A nossa identificação com a mente é o que nos torna sofredores e ignorantes da nossa real e exuberante natureza.

Portanto, quanto mais relaxada e aberta ao novo e ao desconhecido e a pessoa estiver, melhor.

A experiência psicodélica da Ayahuasca começa, muitas vezes com alterações auditivas e visuais, caso o indivíduo mantenha-se de olhos abertos (o que, para uma experiência mais profunda, não recomendamos), onde os contornos dos objetos (animados e inanimados) pode ganhar vivacidade e a própria constituição deles aparentar diluir-se. Inicia-se a dissolução da separatividade dos objetos externos e do próprio ser com relação a eles e ao todo. A percepção espacial muda, assim como a do tempo: os movimentos do corpo podem ser percebidos como mais rápidos e ou seguidos por “rasto” (da imagem de sua própria posição anterior), assim como podem ser percebidos como mais devagar ou de fato assim se tornar nesta fase da experiência.

Assim, aspectos sensoriais – como sonoros, olfativos e visionários – espirituais podem misturar-se aos de nossa experiência sensorial comum. Essa mistura pode ser uma conjugação mais ou menos harmoniosa, a depender dos cantadores ou das músicas. Da mesma forma, a experiência de percepções sensoriais cruzadas ou sinestésicas pode se dar, como por ex., ver o canto entoado subindo ao céu.

Mandala

Sobretudo no escuro e ou com os olhos fechados – a escuridão e o silêncio são obrigatórios em certas sessões ayahuasqueiras com curandeiros -, inicia-se visão de desenhos geométricos, como formas (circulares, retangulares, etc.) e linhas se entrecruzando e ou espaçando-se, desenhos ornamentais elaborados, mandalas, etc. geralmente nunca antes vistos pelo sujeito, que podem envolver todas as imagens do mundo manifesto. Essas formas podem ser mais ou menos abstratas, assim como as formas mais pictóricas ou figurativas que podem começar a aparecer a seguir (mas não necessariamente aparecem), em formas antropomórficas, animais, angelicais ou demoníacas, místicas ou ainda uma mistura desses. Nessa etapa, começam a surgir imagens do inconsciente, ligados ao passado ancestral próprio ou cultural e coletivo, que pode estender-se até os primórdios do surgimento do universo. Facilita-se assim também o contato com aspectos mais ou menos sombrios da própria personalidade ou mente, bem como o contato com entidades espirituais exteriores.

A duração e conteúdo de tais visões varia entre indivíduos e entre uma sessão e outra do mesmo indivíduo, sendo imprevisível mesmo para os mais experientes. “Cada sessão é uma aventura.” O aprendizado também geralmente não é recebido de uma maneira linear ou lógica entre as sessões, porém pode haver igualmente alguma conexão. Outras percepções sensoriais podem somar-se à visão: auditivas, olfativas, táteis além da “intuitiva”, quando se percebe presenças de entidades ou energias próximas, mas não pode-se vê-las. (Jacques Mabit, O uso ritual da Ayahuasca, p. 159-161; 164)

Ayahuasca - Visão

Em seguida, as visões podem somar-se à autoidentificação com outros seres ou fenômenos da natureza, percebendo-se como eles. A pessoa também pode ver seu corpo de fora e empreender voos xamânicos ou viagens astrais, movimentando-se no céu estrelado ou em partes desconhecidas do mundo, ou ainda em outro tempo; ver outros seres, como antepassados e parentes, como também a seres ignorantes ou maus; acontecimentos importantes, como a desencarnação de alguém próximo ao indivíduo ou a alguém do grupo do chá; seus inimigos; seu futuro, filhos, perigos; sua própria desencarnação. Todas essas visões podem se alterar com os sons, daí a importância que os ameríndios dão a não perder contato com o som. (Barbara Keifenheim, O uso ritual da Ayahuasca, p. 111-114).

Michael J. Harner foi o primeiro autor a compilar as experiências e Temas comuns nas experiências de yagé dos índios sul-americanos, em seu artigo Commom themes in South American Indian Yage experiences:

1. a sensação de separação da alma/corpo e a viagem da primeira na forma de voo mágico;
2. a visão de cobras e felinos e, em menor escala, de outros animais predadores;
3. um senso de contato com o sobrenatural, com a visão de deidades e/ou demônios;
4. a visão de pessoas e lugares distantes interpretada como visão de uma realidade distante, isto é, clarividência;
5. a sensação de ver a realização de atos antissociais praticados recentemente, ou seja, divinação.

Michael J. Harner, traduzido e citado por Pedro Luz em O uso ritual da Ayahuasca, p. 59

Pedro Luz cita outras experiências comuns encontradas por Harner: (O uso ritual da Ayahuasca, p. 59)

  • alucinações auditivas;
  • visão de formas geométricas;
  • auras;
  • visão da própria morte;
  • combates contra demônios ou criaturas zoomorfas;
  • visão de corpos brilhantes que se interpenetram mudando constantemente de formato;
  • cenas que se dissolvem umas nas outras.

Pedro Luz e Jacques Mabit adicionam a essa lista “o status de absoluta verdade atribuído às visões causadas pelo chá” (O uso ritual da Ayahuasca, p. 63; 162). Muitos dos que o experimentam atestam o mesmo, pelo menos após a fase mais confusa da experiência. Assim, são capacitados a perceber eventuais desvios em seu comportamento que antes não percebiam ou admitiam, e também experimentam como reais (de uma forma ou de outra) as impressões colhidas em sua vivência. Assim, intuitivamente muitas vezes realizam o que sempre esteve em seu interior.

Ao menos na experiência dos não-indígenas, acrescentamos também aqui, sobretudo no princípio da jornada com o chá – quando e possivelmente por ainda estarmos identificados com a nossa mente e apegados ao ego, o eu que elas nos concede -, a vivência de um estado mental confuso, uma minipsicose e loucura, que é reflexo, entre outras coisas, exatamente do fato da mente querer impor seu mundo manifesto de formas, sentidos e separatividade, frente a uma realidade que se impõe soberana. Calma, você não está louco(a), passar por essa experiência pode ser um bom sinal pois indica que você está quebrando as barreiras da mente e do corpo e se autoconhecendo. Essa ocorrência se dá, como dissemos, especialmente, mas não exclusivamente, nos primeiros contatos do indivíduo com o chá e pode até não se repetir jamais tão dramaticamente se ele compreendeu e absorveu sua lição em sua vida. No dia do ritual, ela ocorre principalmente também nos primeiros momentos, quando as substâncias do chá atingem o cérebro e inicia-se a experiência. Depois suaviza-se e transforma-se paulatinamente em visões mais agradáveis e reflexões.

Te deixa, assim, mais límpido física e mentalmente para a fase seguinte: que trata-se de sentir os eflúvios da alma, o que os Kaxinawá chamam de “visão pura” (Barbara Keifenheim, O uso ritual da Ayahuasca, p. 117), percebendo assim soluções, insights, realizações, arte, etc. que têm o poder de mudar sua vida ou contribuir para a mudança que já está ocorrendo nela. Nessa fase, idealmente mantenha a mente o máximo possível calada e não permita que ela interfira, querendo catalogar, sistematizar e interpretar as informações, deixe esse processo para depois, pois se você se apegar novamente à mente analítica agora poderá perder as próximas impressões do seu Ser. Igualmente, se tiver em grupo, evite abrir os olhos, conversar, se distrair, para aproveitar ao máximo essa fase, que pode durar até umas duas horas – a partir de certo ponto desse período é comum ir sentindo a inspiração gradativamente diminuir. Quando esse estágio da paz interior chegar, se possível recolha-se em seu canto em silêncio; para alguns a música cantada agora pode atrapalhar as reflexões, enquanto outros preferem usá-las como inspiração adicional. A música instrumental quase sempre ajuda: nessa categoria o tom, a batida, a melodia delas podem direcionar a inspiração.

O paradoxo da autoentrega (do eu/ego)

Todos querem o saber/poder, todos querem ser como os imortais, mas, por outro lado, todos temem a morte e a loucura. Ter um corpo (com seus desejos) e uma identidade (com sua memória) estabelece limites indesejáveis, porém não deixa de constituir-se em uma garantia (de vida).

Eliane Tânia Freitas (1996, p. 160), citada por Pedro Luz em O uso ritual da Ayahuasca, p. 62

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