Esta página será melhor entendida com a compreensão de que a Bíblia não é a palavra de Deus.
Aqui, analisaremos casos em que a mulher é colocada em posição inferior ao homem na Bíblia, com atenção ao Novo Testamento, e como isso é um fator determinante na violência de gênero presente em diversas igrejas cristãs no Brasil.
Não avaliaremos a – menos tangível mas histórica – violência fora da religião que determinadas visões presentes na Bíblia e em outros textos sagrados, por “justificar”, podem suscitar.
Paulo e tradição paulina
Ao falar sobre o caminho de Jesus e o Cristianismo, demos um exemplo de como Paulo pode cometer tanto acertos como erros de julgamento. Os outros autores – os pseudo-Paulos – da tradição paulina pioram as coisas.
O véu das mulheres
Outro exemplo das polaridades de Paulo é o contraste entre o belíssimo “Hino ao amor” (1Co 13) e o infeliz discurso sobre o véu feminino (1Co 11.2-16), que situa a mulher claramente abaixo do homem: “Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a cabeça da mulher” (v. 3) e “O homem, pois, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do homem” (v. 7).
A inferioridade e sujeição da mulher com relação ao homem também são retratadas nos versículos Cl 3.18-19 e Ef 5.22-25 (paralelos entre si) das epístolas (para nós pseudo-)paulinas Colossenses e Efésios.
Enquanto o conjunto da perícope de 1Co 11.2-16 raramente é interpretado diferentemente do que um costume (v. 16) da época (salvo exceções como a CCB, que emprega o véu feminino), o princípio machista subjacente não.
“Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem.” (v. 8-9). Ainda que os v. 11-12 suavizem a questão, não corrigem o estrago dessa desastrosa passagem de Paulo que é um exemplo expressivo do que o apóstolo e outros autores do Novo Testamento fizeram: levar as tradições judaicas do séc. VII AEC para o primeiro século de nossa era. Daí, os cristãos as estão arrastando até o século XXI, vinte e um! São pelo menos 27 séculos de retrocesso!
O problema não são as tradições judaicas; não só o seu mundo era patriarcal, machista, mas quase todo o planeta. O problema é a perpetuação de uma ideologia que tem em sua base um pedaço de um mito antigo, o mito da criação, Gn 2.21-22, composto por homens nesse contexto patriarcal que, psicologicamente falando, mais ou menos conscientemente, “”justifica”” todo tipo de violência – física e psicológica – contra a mulher. No século 21!
Por quê? Porque a palavra de Deus diz…
Que palavra de Deus?
O que exatamente estamos tratando de perpetuar?
Na Bíblia do Peregrino, o comentarista, embora em geral defenda o sentido sagrado do cânone, não deixa de realizar o comentário crítico textual das passagens, como o faz nesta:
Pelo tema, a meu ver secundário, e pela maneira de argumentar, essa instrução parece desconcertante. Que diferença dos outros temas tratados na carta! Se era uma das consultas dos coríntios, Paulo não tem instruções do Senhor sobre o tema. Paulo tenta justificar aquilo que é prática condicionada por usos sociais, limitada no tempo e no espaço…
Comentário de 1CO 11.2-16 do teólogo Luís Alonso Schökel na Bíblia do Peregrino
Como dissemos, a discussão conceitual do papel da mulher é mais importante do que o tema da perícope em si, mas voltando a ela descobrimos mais nuances que podem ter passado despercebidas:
Por causa dos anjos!
“Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio [autoridade], por causa dos anjos [ou mensageiros].”
1ª aos Coríntios 11.10
No comentário de Schökel: “por causa dos ‘anjos’: a interpretação é duvidosa e discutida. Alguns os tomam por seres celestiais, representantes do mundo celeste na liturgia terrestre. Outros pensam em oficiantes do culto, aos quais as mulheres não cobertas poderiam provocar. Outros tomam o termo em seu sentido simples de mensageiros, ou seja, visitantes de outras igrejas. Ver o costume antigo em Gn 24.65.”
O Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro opina que a passagem fala de se evitar provocar sexualmente os anjos.
No fim, seja no sentido de ratificar a inferioridade da mulher com relação ao homem (v. 4-7) e em suas relações com Deus, seja no sentido de sinal de respeito e discrição (ou mesmo castidade) com relação ao homem, ou naquele de não provocar mensageiros ou anjos, o significado da perícope como um todo é sempre pernicioso com relação à mulher, em bom e atual português, misógino.
E isso tudo, constando na “palavra de Deus”, permeia o imaginário, o inconsciente e as práticas cristãs.
Se você acha que estamos fazendo muito barulho por nada, logo mais lhe deixaremos a par do que acontece dentro de algumas igrejas cristãs.
Pseudo Paulo
Estudando as epístolas paulinas, descobrimos que três delas são pseudoepigráficas, ou seja, embora o escritor se identifique como Paulo, não são de sua autoria.
Dentre esses ilustres autores que já iniciaram sua epístola com uma mentira, o escritor da “1ª a Timóteo” conseguiu escrever uma das passagens mais feias e misóginas da Bíblia, seguindo trecho presente na primeira carta aos Coríntios:
A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição.
Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio.
1ª a Timóteo 2.11-12
Ele conclui seu raciocínio: “Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva.” (v. 13) – note como a lógica paulina de 1Co 11.8-9 baseada em Gn 2.21-22 continua sendo usada.
Aproveitando tamanha inspiração divina, o autor continua: “E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão.” (v. 14) – coloca a culpa na mulher!
E fecha com chave de ouro: “Salvar-se-á, porém, dando à luz filhos, se permanecer com modéstia na fé, no amor e na santificação, [com temperança].” (v. 15) voltando novamente mais de 700 anos na tradição ao recorrer a Gênesis (3.16-20). A mulher se salva caso se contente em ficar calada e gerar filhos, com temperança (a palavra não aparece na tradução da ACF, traduzida na ARA como “bom senso”) e santificação, o que nas epístolas paulinas e nas universais do NT se relaciona também com a repressão sexual (que é tema para outra oportunidade).
Trechos assim são exemplos perfeitos de como a “substituição da lei pela fé no Cristo” pregada por Paulo é, na prática, logo suplantada por uma nova lei que nada mais é do que uma releitura da lei anterior.
Paulo e esses escritores são os maiores inimigos da mensagem de Jesus. Essas mensagens, relacionadas a usos e costumes, muitas vezes sobrepõem os ensinamentos do mestre dentro das igrejas.
Mulheres caladas
Ao passo que a 1ª carta aos Coríntios é um livro reconhecidamente original de Paulo, alguns trechos são discutidos como podendo ser acréscimos posteriores. É o caso de 1Co 14.34-35:
As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei.
E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja.
1ª aos Coríntios 14.34-35
Alguns estudiosos – como Ehrman, p. 189.2, Scot McKnight e Luís Alonso Schökel, comentador da Bíblia do Peregrino – o tiram da conta do apóstolo, ao passo que outros, como Daniel B. Wallace (e referências) argumentam sobre a possibilidade de autoria original.
Como dissemos, sendo de Paulo ou não, trechos como este retratam a mentalidade dos primeiros séculos de nossa era, ao menos entre alguns cristãos, e estão na Bíblia.
Por estarem nela, são incorporados à tradição cristã e ajudam a formar ou justificar uma mentalidade, consciente ou inconscientemente, que desencadeia toda forma de discriminação e violência contra a mulher, dentro e fora da igreja.
Na prática, hoje, dois mil anos depois, independentemente de quem tenha sido o autor de um ou outro livro ou trecho, o ponto é aceitar que a Bíblia não é a palavra de Deus, que tem sim pontos críticos e nocivos, bem como mitos e mentiras.
O que está acontecendo nas igrejas cristãs
Se este nosso texto viesse somente até aqui, poderia cair no campo da mera especulação filosófica no domínio da religião. Poderia ser que as coisas estão escritas daquele jeito mas hoje, na prática, ninguém as toma assim. Mas, infelizmente, infelizmente, não é isso que acontece.
Vamos fazer um apanhado de depoimentos de ex-membras e membros de igrejas cristãs (a maioria em entrevistas para o Prof. Daniel Gontijo em seu canal) que exemplificam como a tradição patriarcal e machista do AT que se reflete no NT impacta existencialmente na interpretação dos líderes e membros dessas congregações.
É impossível dissociar uma coisa da outra. A raiz do pensamento está na Bíblia, mais precisamente em determinados livros e passagens que os cristãos insistem em manter no cânone, porque na verdade se algo puder ser alterado ou excluído com base em nosso conhecimento científico e espiritual ou autoconhecimento, isso pode chegar mesmo às bases da fé cristã. No fundo, parece sempre um ajuste do quanto de ilusão cada um de nós deseja manter sobre o assunto.
Vamos classificar os depoimentos pelos nomes das igrejas que seus autores frequentavam e às quais se referem, mas com isso não estamos querendo dizer que eventos como os apontados aconteçam em todas as igrejas das denominações citadas.
Tampouco sejamos inocentes o bastante como para pensar que essas coisas aconteçam somente nas instituições citadas.
As declarações refletem opiniões e impressões pessoais desses seres humanos. Nosso objetivo aqui é demonstrar como a ideologia dos textos apresentados está presente, hoje, em nossas igrejas.
Congregação Cristã no Brasil (CCB)
- Michael Oliveira & Mah Olliver afirmam que “a mulher é desvalorizada dentro da igreja”.
- Ricardo Adam em seu canal: “mulheres que vocês [líderes, anciãos] obrigaram a ficar casadas com pederastas, com vagabundos, canalhas, predadores, assaltantes, violentadores, espancador de mulher. ‘Você não vai divorciar porque você vai pro inferno!’, a pessoa ficava com medo de ir pro inferno, a gente acreditava em vocês!”. Um pouco mais adiante, ele afirma: “Bom, cúmplice da discriminação de mulher, todos os que estão na Congregação são. Porque quem não é cúmplice da discriminação da mulher não vai frequentar um ambiente tóxico desse né, onde a mulher não pode tocar [música] porque é mulher…” Sobre o medo do inferno, mais adiante ele acrescenta: “se desconfiar da palavra [dos líderes] vai pro inferno, se desconfiar da ordenação vai pro inferno…”.
Igreja Batista da Lagoinha
- Clara Tannure: “Então eu achava muito esquisito, porque eu achava mesmo que tinha essa diferença de tratamento entre homens e mulheres muito marcada, e que as mulheres eram quase que infantilizadas. Eu sinto que eu tive uma influência muito forte dessa imagem da mulher, que é muito ‘bela, recatada e do lar’, ela fala doce, ela nunca questiona, ela tá sempre feliz em servir, ela tá ali pra servir, ela tem alegria em servir. Então, assim, essa questão do machismo muito presente também foi uma coisa que sempre mexeu comigo. Não entendia, porque parecia que os homens podiam tudo e as mulheres não podiam nada. E elas tinham que ficar ali, atrás. Tinha muito esse ensinamento, né, ‘a mulher é o pescoço e o homem é a cabeça‘. Então ela tá ali dando um apoio para ele que é o verdadeiro mestre, digamos assim.”
Assembleia de Deus
Por influência de textos bíblicos como os epistolais apresentados, existe uma linha de pensamento muito comum em igrejas evangélicas de respeito ao marido e preservação da instituição do casamento.
Dentro desse contexto ideológico-religioso, casos de violência doméstica contra a mulher como o relatado por Marcelle Silva são comuns: uma mulher sofre violência doméstica por mais de 10 anos, recorre à figura do pastor e a solução que ele apresenta reflete um total despreparo para tratar da violência doméstica: orar. O problema é milagrosamente resolvido e a igreja acha isso maravilhoso.
Essa mulher, infelizmente arquetípica, sofreu por todo esse tempo pois foram colocadas até mesmo na boca de Jesus as palavras e a ideia de que “o que Deus ajuntou não o separe o homem”, primeiro por Paulo (1Co 7.10-11), depois pelo evangelista de Marcos (10.1-12), que faz Jesus repetir Gênesis 1.27 e 2.24 em um contexto que, ironicamente, tratava de defender o direito das mulheres em uma sociedade patriarcal, falando contra a prática proposta pelos fariseus que constava na lei em Dt 24.1-4.
Esse é mais um exemplo de como o Novo Testamento incorpora em si o Antigo.
Já Talie Alves relata uma situação muito parecida com a discutida no trecho de 1Co 11.10: as adolescentes não podiam cortar o cabelo ou usar brincos ou batom, para não chamar atenção dos homens (os anjos!) da igreja.
Testemunhas de Jeová
Bárbara Freitas resume sua percepção e sentimento: “Eu não quero pertencer a um mundo onde a mulher é inferior ao homem. Eu não quero pertencer a um mundo onde existe existe só uma forma de amor. Eu não quero pertencer a um mundo onde existe só existe uma verdade, todo resto é errado…”
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
Aline Barbosa conta como viveu um relacionamento abusivo, passou por cárcere privado: “Ele ameaçava porque eu era muito submissa a ele também. Porque lá dentro tem o tal do machismo, que a mulher tem que obedecer ao homem, tem que ser cegamente obediente…”
Repetindo a ideologia que vimos no caso da Assembleia de Deus, “eu fui orientada por esposas de pastores… a continuar com ele, e orar a Deus, porque o problema não era ele, o problema era eu. Eu não estava orando o suficiente por ele, eu não estava cuidando dele…”
Este caso toma contornos dramáticos, quando ela procurou a direção, a liderança máxima da igreja: “eles me culparam de novo. Que eu a problemática da história. Que eu tinha destruído a vida de um pastor. Que eu não era mulher de Deus o suficiente, que eu não era nascida de Deus, que eu não tinha a presença de Deus na minha vida, uma humilhação total. Sabe, trancada numa sala sem a presença de ninguém que eu conhecia que pudesse dar apoio para mim. Só com essa liderança e a esposa dessa liderança, e a humilhação ali. Que é o casal fake né, que todo mundo fala, acho que quem tá ouvindo deve saber de quem eu tô falando…”
“Casal fake” jogado assim no ar abre a possibilidade de ser qualquer líder de hierarquia na igreja e sua esposa. Atualmente, as lideranças que mais têm suas imagens ligadas a conselhos para relacionamentos amorosos são o Bispo Renato Cardoso e sua esposa Cristiane Cardoso (genro e filha do Edir Macedo), autores do livro Casamento blindado e apresentadores do programa Escola do Amor – The Love School e da sessão Terapia do Amor.
Ela foi “colocada de castigo”, afastada do cargo de obreira, difamada por líderes da igreja, que visavam defender a honra do futuro pastor.
Em seguida, ela sofreu novo assédio moral de um bispo dentro do Tempo de Salomão, sede da IURD.
Como Sidarta Ribeiro, acreditamos na ética do cuidado, aonde o mais forte cuida do mais fraco – esses casos ilustram exatamente o oposto.
Quantos pais ficam felizes que seus filhos e filhas estão em uma igreja, não imaginando o tipo de situação, sofrimento ou pressão psicológica que eles podem estar sendo submetidos, dependendo da instituição escolhida.
Igreja Católica
Nos depoimentos analisados sobre a Igreja Católica, não foram encontrados relatos de abusos como os acima listados, sofridos por causa da condição de mulher, excetuado, talvez, pelo de Leidiane Silva, uma aspirante a freira na época com 19 anos, que “levou toda a culpa” e foi “convidada a se retirar” do convento por uma situação de flerte com um funcionário mais velho. Ele era irmão de uma líder da instituição, o que indica também uma motivação nepotista para essa decisão.
Novamente, isso tampouco quer dizer que excessos como os citados nesta página não ocorram em determinadas igrejas e outras instituições católicas (ou outras igrejas cristãs não avaliadas ou mencionadas aqui) pois, como vimos, existe base bíblica para eles, bastando um maior fundamentalismo ou estreiteza de mente da liderança.
É importante ressaltar que a Igreja Católica tem em sua hierarquia mesmo uma distinção entre homens e mulheres: os papas, cardeais, bispos, padres, etc. são todos homens, pois “o Senhor Jesus escolheu homens para formar o colégio dos Doze Apóstolos, e o mesmo fizeram os Apóstolos quando escolheram os seus colaboradores…” (Catecismo da Igreja Católica #1577).
O Catecismo da Igreja Católica (Edição Típica Vaticana), publicado em 1992, é uma exposição da fé católica e da doutrina da Igreja. (Wikipédia)
O Catecismo esquece-se das colaboradoras de Paulo. Não cogita-se também reavaliar a proximidade relatada nos evangelhos de Maria Madalena com Jesus.
Assim, hierarquicamente, na Igreja Católica o potencial e as possibilidades da mulher são sempre inferiores aos do homem.
Despertando
A mulher, como o homem, se esqueceu de quem realmente é. O ser humano está na miséria. Entre o Cristianismo Paulino e o caminho que Jesus indicou, as igrejas quase sempre parecem optar pelo primeiro ou, talvez dizendo melhor, pelos aspectos mais limitantes ou negativos dele – o certo é que em muitos casos, como os que avaliamos aqui, os ensinamentos de Jesus estão em segundo plano.
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Jesus Fora do Novo Testamento (Robert E. Van Voorst)
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