O Caminho de Jesus e o Cristianismo

Melhor é a repreensão franca do que o amor encoberto.

Leais são as feridas feitas pelo amigo, mas os beijos do inimigo são enganosos

Provérbios 27.5-6 (Bíblia ACF)

Se começarmos a falar de Jesus sem esta explicação prévia, poderá parecer que estamos falando de Cristianismo. E, absolutamente, não estamos.

É claro que a abordagem sobre determinadas passagens dos evangelhos serão semelhantes; não precisamos evitar as conclusões e discursos cristãos válidos.

Mas temos que deixar claro aonde estão as diferenças. E a mais importante reside no próprio fundamento da fé cristã, aquilo pelo qual o Cristianismo tem este nome, a saber, a crença de que Jesus é o Cristo, o messias prometido no Antigo Testamento, com a transformação da tarefa que dele se esperava, de liderar o povo judeu em sua libertação dos povos que o dominava para a de Salvador da humanidade, através do sacrifício da cruz.

Messias, Cristo

A palavra messias, no hebreu mashíakh (מָשִׁיחַ), significa “ungido”, e no grego transformou-se em Cristôs (Χριστός), Cristo. O messias esperado pelos judeus seria um líder ou rei que libertaria Israel do domínio estrangeiro, como podemos ver por ex. em Jr 23.5 e na expectativa descrita pelo autor de Atos, em 1.6. Uma vez que Jesus não havia desempenhado este papel, os primeiros cristãos remodelaram a figura do “Cristo”, de maneira que pudesse adequar-se a Jesus – ou dizendo melhor, que pudessem adequar Jesus à figura de “Cristo”.

Como o fato irremediável, triste e frustrante dele ter sido crucificado não se encaixava com o Cristo esperado, o movimento o transforma em um libertador, agora no nível espiritual.

A ideia do Messias é uma mera tradição judaica, bastante especulada na época de Jesus. Não há nenhum Cristo, salvador. Essa crença está na mente e é antes um empecilho que um auxílio ao autoconhecimento. Existencialmente, psicologicamente essa condição ou “espera” limita nosso próprio potencial de autorrealização. Porque você é um buda. Psicologicamente falando, só você pode ser seu próprio cristo, seu próprio libertador.

O problema do Cristianismo

O Cristianismo, como foi desenvolvido, está estruturado com diversas crenças e pontos de vista – diga-se, existencialmente limitantes – que não têm origem em Jesus, mas sobretudo nos primeiros seguidores e líderes cristãos, aqueles que estabeleceram as bases da fé cristã, entre os quais destaca-se a figura do apóstolo Paulo. Essas personagens, como os autores dos evangelhos canônicos, conectaram Jesus e o Cristianismo a seus próprios pontos de vista e ao Tanaque, a “bíblia hebraica” – diga-se de passagem, a base cultural de Paulo -, a partir do que mais tarde a religião viria a assimilar seus textos no que conhecemos como Antigo Testamento.

O problema básico do Cristianismo é a sua própria crença fundamental: a de que Jesus é uma manifestação de Deus, ou Deus próprio, destinada a pagar com seu sangue por nossos pecados e que, para a salvação de nossa alma, é necessário aceitá-lo como nosso salvador.

E por que isso vem a ser um problema? Em primeiro lugar, porque é uma mentira, criada pelos primeiros cristãos. E uma mentira, mesmo que venha sendo repetida há dois mil anos e por bilhões de pessoas, não se torna verdade.

Depois, porque não é necessário que alguém salve a nossa alma, no caso, do Inferno. E há complicados desdobramentos psicológicos nessas crenças, dos quais talvez as raízes sejam estas:

  • ao apontar um ídolo salvador, o processo de realização individual é comprometido. Não negamos que Jesus seja uma manifestação divina – nossa diferença para o Cristianismo é que você e cada ser também é, igualmente, uma manifestação divina. O que queremos dizer com autorrealização? A realização da sua verdadeira essência e natureza, para além da mente e que abrange todo o Cosmos. Se houver qualquer figura em sua mente, entre você e aquilo que é real, mesmo que seja um Jesus ou um Buda, esta figura estará lhe atrapalhando; o ídolo, não importa quem seja, sempre estará “sobrando”, pois na verdade você é um.
  • a ideologia teísta, aquela baseada em um Deus personificado, como é o Cristianismo, limita a ideia de Deus em determinados contornos que, entre outras coisas:
    • sequestra Deus para o seu lado, ao proferir: “nós somos o povo de Deus” (e quem não o é?); “a palavra de Deus” (será? E não há outras?); “a vontade de Deus” (segundo a nossa vontade); etc., ah, recentemente teve até “o candidato de Deus”, que fez acordos políticos com diversos bispos, missionários, pastores e apóstolos, todos, evidentemente, “de Deus”, Seus próprios intermediários.
    • leva-nos a julgar (contrariando a Jesus) e “condenar” quem tem uma visão diferente desse Deus ou mesmo não crê em Deus algum.
    • atrapalha, e muito, o cristão a libertar-se da verdadeira prisão em que se encontra, que é a própria mente. Se o próprio Deus tem um ego, uma personalidade, um povo escolhido e um plano demasiadamente humano, como esperar que o crente seja diferente e possa vislumbrar a possibilidade de livrar-se de sua própria identificação com o ego? Em outras palavras, ao invés de despirmos Deus de uma personalidade para que, fazendo o mesmo, possamos sentir a conexão com o Absoluto, preferimos atribuir uma personalidade a Ele para nos relacionarmos com ela, sempre a partir de nossas (limitadas) atuais visões de mundo (e de Deus).
  • o medo do Inferno sempre foi um dos principais “argumentos” cristãos. Sem o Inferno, mesmo, o Cristianismo perde grande parte de seu poder persuasivo. Certas igrejas têm mesmo o Diabo como um de seus principais personagens. Vivem de tocar terror no psiquismo dos fieis, geralmente com interesses financeiros. Elas parecem ter mesmo o Diabo ou Satanás como seu sócio ou o sócio de Deus.

Dogmas e crenças

Entre os principais dogmas cristãos estão as crenças:

  • que Jesus é (ou foi) verdadeiramente humano e verdadeiramente Deus: como dissemos, não há problema algum nisso, desde que consideremos que também somos verdadeiramente humanos e verdadeiramente Deus.
  • que Jesus nasceu da virgem Maria: como você pode se igualar a isso? (Osho) Note-se que aquele que para a maior parte dos especialistas é o mais antigo entre os quatro evangelhos, Marcos, não cita nada sobre este fato. E olha que não podemos dizer que Marcos já não seja teologicamente desenvolvido. Nele, Jesus aparece já na cena de seu batismo por João. Lucas e Mateus, evangelhos mais tardios e dotados de inúmeros motivos doutrinários, recontam a história de Jesus desde sua concepção miraculosa e, portanto, especial.
    Ademais, como brilhantemente percebe Nietzsche em O Anticristo (cap. 34), ao inventar o dogma da imaculada conceição, o Cristianismo macula toda concepção.
  • que Jesus morreu pelos nossos pecados: a ideia do sacrifício animal para expiação dos pecados era comum na tradição judaica e em muitas outras do mundo antigo. Os primeiros cristãos, dos quais Paulo fez-se porta-voz para nós, a empregaram para Jesus. E João, o último dos evangelhos a ser escrito e o teologicamente mais desenvolvido, a sacramenta ao colocar as palavras na boca de João Batista (1.29): “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.” Agora, que plano mais absurdo este de Deus de sacrificar seu filho (ou qualquer outra criatura) para pagar pecados de outros. Mas isso cria uma dependência psicológica profunda: como você pode recusar aquele que morreu por você?
  • que Jesus ressuscitou dos mortos: para em breve desaparecer novamente. Aqui, uma curiosidade, os versículos 9 ao 20 de Marcos 16 são adições posteriores de escribas, não estão no texto original.
  • que Jesus ascendeu ao céu: o argumento que o destino dele foi, portanto, diferente de todos os demais.
  • e que Jesus voltará para julgar vivos e mortos, e todas as tramas apocalípticas desde sempre esperadas: como fica claro nas primeiras cartas de Paulo, os primeiros cristãos esperavam uma iminente volta de Jesus. Como ela não se deu, os textos, as doutrinas e as crenças foram sendo ressignificados.
  • na doutrina da Trindade. Encaixa-se um ídolo aonde só existe um que, então, em última análise é você mesmo.
  • na Bíblia como a palavra de Deus, sendo a autoridade máxima em questões de fé e prática: acontece que a Bíblia, assim com qualquer outro texto, não é inerrante nem deveria ser considerada autoridade sobre a nossa experiência real. O homem criou um Deus à sua imagem e semelhança, com muitos dos nossos defeitos projetados sobre o Deus de Israel e tantos outros. As nossas qualidades projetamo-las no Jesus Cristo. Não faltarão oportunidades para citarmos e explicarmos as incoerências presentes em toda a Bíblia, se você a considerar a palavra de Deus. Um bom começo é considerar cada livro dela como o que ele realmente é, tendo sido escrito por mãos humanas com determinado propósito, ou seja, há cartas que são de Paulo, com opiniões de Paulo (não necessariamente de Deus), e também há cartas escritas como fossem de Paulo mas não o são, ou seja, já começam com uma mentira: “Paulo, …”; os livros do Antigo Testamento contém sobretudo relatos de tradições orais retroativas; o mesmo pode se dizer dos evangelhos – estes têm motivos teológicos, um “demonstrar que temos razão” através da autoridade de Jesus.
A exortação aos apóstolos
“A exortação aos apóstolos”, de James Tissot © CC Brooklyn Museum

Contrapondo o Cristianismo

No entanto, pelas experiências dos seres autorrealizados de todas as eras, como Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj – para citar dois do século passado -, ou mesmo daqueles que comprovadamente têm ao menos vislumbres lúcidos da Realidade, como Osho e Eckhart Tolle, o Cristianismo não pode estar certo.

Não fosse eu mesmo alguém que tenha percebido translucidamente tudo isso, não estaria compondo este documento. E se você conferir a bibliografia citada em Bastidores do “Caminho de Jesus”, as chances são que comece a perceber o mesmo.

Não tenha medo de investigar. Como vimos, o medo é uma das amarras que te prende. Talvez você tenha medo do que vai ler, encontrar, do que vai pensar. Se for o caso, medite sobre que Deus é esse que você acredita que prefere os que recusam-se a examinar o que seria a sua palavra, ou a de seu filho? Que prefere os medrosos aos corajosos, os dependentes intelectuais aos independentes? Em suma, os aprisionados aos livres? Um cretino engravatado ou santificado que está disposto a saquear até o que seus pobres fieis não têm – ainda vamos abrir um capítulo especial sobre a Igreja Universal – ou tratá-los por ovelhas, fazendo-lhes agir feito rebanho ou papagaios, nas igrejas como nas urnas, ou ainda a chamá-los – ou, pior, fazê-los chamarem-se – de pecadores todos os domingos, a alguém que está tentando encontrar o Jesus real, trabalho para o qual é necessário limpar as bases mistificadoras da Igreja?

O Evangelho não é a vinda do Salvador

Evangelho (εὐαγγέλιον) significa primariamente “boa nova”, “boa notícia”. A boa notícia que trouxe Jesus não é a que ele seja o Salvador da humanidade, o Cristo ou Messias esperado pelos judeus, mas que o Reino dos Céus (ou de Deus) está dentro de cada um de nós aqui e agora e sua experienciação, de modo mais ou menos lúcido, está disponível a todos.

Mesmo antes mesmo de Jesus, outros seres como Sidarta Gautama (o Buda histórico) e Lao Tsé (autor do Tao Te Ching), apresentaram esse reino ou estado de consciência.

Jesus deu a vida por nós?

Jesus deu sua vida por nós: esta parte tem seu lado verdadeiro no sentido em que ele tenha pagado com a vida por suas atitudes, que incluem a proclamação de certas verdades existenciais em suas mensagens que não poderiam ser caladas, dada a importância de torná-las publicas.

Da mesma forma o fizeram Sócrates (na história ou na lenda), Mansour e diversos mártires, místicos e sábios que não se abstiveram de proclamar as verdades encontradas, ainda que estas fossem contrárias à interpretação cultural ou religiosa corrente. Eles cumpriram o seu dharma, não importando as consequências.

Não existe um salvador

Deus ter um plano no qual é preciso acreditar no fato de algo ou alguém ser a Sua manifestação ou filho único, e que essa manifestação – talvez somente ela – é a salvação para a sua alma, além de absurdo e antinatural, remete todo o caminho espiritual a uma coisa mental. A assim chamada “religião” tornou-se praticamente toda mental. Até mesmo as manifestações espirituais e extáticas alcançadas dentro das igrejas são podadas pela mente, à medida que precisam passar pelo crivo das escrituras. E a mente, sabemos, está na superfície.

O próprio fato de Deus ter esse plano coloca-o em uma escala evolutiva muito parecida à humana corrente, presa pela mente e dada a caprichos. Esse Deus pessoal, personificado, antropomorfizado, a evolução do sádico Deus de Israel, tão parcial antes como agora, preocupado, segundo o Cristianismo, se você sente atração sexual por A ou B, se é afeminado ou não, se vai se casar outra vez, etc. não existe. Existe, sim, o Todo, o Grande Mistério da manifestação espiritual e física da Existência, aquilo que podemos chamar Deus.

É por esse motivo que os pregadores adoram falar sobre as cartas de Paulo ou passagens do Antigo Testamento. É mais difícil comentar passagens transcendentais de Jesus pois, se você se aprofundar nelas, descarta tanto Paulo como o Antigo Testamento, e até mesmo muito dos evangelhos canônicos, influenciados também pelo pensamento do primeiro Cristianismo, no qual Paulo foi determinante.

Contar com um salvador cria-lhe um obstáculo psicológico ou até existencial

Se você teve contato com o pensamento evangélico, já deve ter ouvido a fatídica pergunta:

Você aceita Jesus Cristo como seu único Senhor e Salvador?

Essa pergunta é feita sobretudo ao final de uma pregação que teve entre os ouvintes pessoas de fora da igreja. Cada pessoa que diz “sim” é uma “alma para Jesus” que o pregador ganhou.

A única resposta que não trai quem você realmente é, o que você realmente é, é: Não, não aceito!

E por que é a única resposta? Porque essa interpretação de Salvador, como se deu, está incorreta. Psicologicamente, você contar com alguém pra te salvar, te limitará a sempre estar no papel de impotência, de passividade quanto ao próprio destino e até mesmo, em maior ou menor grau, de vítima. Te coloca numa posição de dependência. E a iluminação, o chegar ao reino dos céus, é individual.

E, para tentar te tirar de vez sua de seu ser, de seu centro, acrescentam “seu único Senhor”. Um senhor é uma figura de autoridade ou propriedades a quem devemos ser subservientes. Sermos servos. Você não é servo de ninguém! Você tem o potencial interno de se realizar, de se perceber como ser ou alma que desfruta a existência fenomenal.

A figura do “senhor” remete ao mundo antigo e do Império Romano do primeiro século da EC, de reis e súditos ou vassalos, senhores e servos, amos e escravos. Essa situação social persiste até hoje em seus diversos graus de disparidade entre as partes. Mesmo a escravidão e subjugação de povos inteiros perduraria até nossos dias.

Ainda que socialmente o papel do servo ou subordinado perdure, no seu mais íntimo ser ele não existe, você sabe que é o “senhor” porque na verdade, existencialmente, só você o pode ser. Se você for fundo o suficiente, descobrirá que nesse estágio tudo o que está fora pode ser considerado ilusório. É impossível que exista um senhor além de você; ou da sua própria projeção.

Nenhum guru realmente autorrealizado jamais chamou um discípulo de servo. Se você tiver a Jesus como esse Guru (e aqui tratamos justamente de uma opção desse caminho), sob suas instruções você pode se realizar de diversas formas. Adiantamos aqui que, para se realizar, no último momento você (o eu separado) deixa de existir. E antes dele a última ilusão de separação ou apego que se deve “matar” pode ser a ilusão do guru: ele também tem de deixar de existir pra você. Em suma, não havendo mais um “eu”, não existe também o “outro”; se não há mais “eu”, como pode haver um “você” ou um “senhor”?

Essa já é a visão do mestre: ele não pode se ver como o senhor e você como servo, porque não vê diferença entre vocês, ele sabe que por trás das separações você e ele são um, não há hierarquia e muito menos servidão. Isso não impede um discípulo de, por gratidão ou prazer, “servir” a seu mestre ou tornar sua vida um “serviço” à sua mensagem mas, novamente e sempre psicologicamente falando, se ele se considerar sempre servo e o mestre senhor, esta concepção egoica será sua própria barreira para a autorrealização.

Então se você quer descobrir quem você realmente é, pare de chamar este ou aquele de Senhor ou Salvador, não coloque esses grilhões no seu próprio potencial.

Divulgar a “Boa Nova de um Salvador” torna o Cristianismo uma “não aceito o que você é”

Isso de pregar a Boa Nova aos quatro cantos, quando se perde o significado do que foi a Boa Nova, tornou o Cristianismo um “eu não aceito o que você é”. Aconteceu antes e está acontecendo neste momento. Aconteceu quando a Igreja chegou nas Américas, junto com os europeus. Acabaram ou dizimaram culturas que possuíam uma espiritualidade muito mais profunda e real do que aquela que pregavam.

O Cristianismo é paulino

A Bíblia tem opiniões pessoais, mitos, histórias recontadas de outras tradições. Não é a palavra de Deus – mesmo porque Deus não fala em termos pessoais.

É necessário que se saiba algo sobre a tal “inspiração divina”. Quando vem uma inspiração – que pode ter diversas fontes: seu ser, a Existência ou outras consciências – ela pode ser mais ou menos moldada por seus próprios condicionamentos e conteúdos mentais, que envolvem sua visão de mundo atual, com todos os conceitos e preconceitos.

Paulo possui momentos de inspiração e pode-se argumentar que em todas as suas cartas surgiram desses momentos, mas isso não muda o fato que existia um Paulo, com sua mente e todas essas predisposições e preocupações com a situação de sua vida e sobretudo a da igreja. Vamos a um exemplo. Em 1ª Coríntios 6, Paulo está tratando sobre a vanidade de irmãos em Cristo – que estão se esforçando pela conduta correta – recorrerem a meios fora da Igreja, como juízes oficiais, para resolver questões pessoais, quando fala algo de realmente grande beleza existencial:

“Na verdade é já realmente uma falta entre vós, terdes demandas uns contra os outros. Por que não sofreis antes a injustiça? Por que não sofreis antes o dano?

Mas vós mesmos fazeis a injustiça e fazeis o dano, e isto aos irmãos.

Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus?”

Paulo, em 1 Coríntios 6:7-9

Note que o versículo 7 acima é de uma bondade extrema, o 8 é perfeito sobre justiça, mas o 9 já traz uma suposição que, embora talvez seja verdade, não pode ser assumida como uma premissa lógica confiável. Se ele parasse por aí, nem citaríamos este último versículo, mas ele serve como ponte para outras premissas, já nada confiáveis, mas que milhões de pessoas tomam como verdade absoluta, como inspiração divina, a famigerada palavra de Deus, algo que nada mais são que aquilo que a mente de Paulo considera os “bons costumes” ou “comportamentos agradáveis a Deus”:

Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.

Paulo, em 1 Coríntios 6:10

Esta passagem demonstra que Paulo não sabia do que estava falando. Ele esqueceu de falar também que, como estamos, quase ninguém está se encaminhando para o reino de Deus, ao menos não nesta vida, nesta Terra. Para Paulo, o reino seria um lugar herdado por aqueles que se comportarem. Ele aparentemente não sabia que o reino de Deus está dentro de cada um e que seu acesso independe de determinados temperamentos.

Um devasso pode estar no caminho de entrar e um “santo” ficar de fora – aliás, às vezes os devassos abrem muitas janelas para ele. Os efeminados, por sua sensibilidade feminina, receptiva, costumam estar melhor encaminhados para isso que os “pastores” e missionários, por sua exacerbada mentalidade masculina, conquistadora.

A palavra idólatras neste versículo remete ao culto pagão de divindades romanas e gregas. Mas, a rigor, se os idólatras não herdam o reino de Deus, os cristãos serão os primeiros a ficarem de fora, pois hoje não há ídolo maior do que Jesus Cristo.

Jesus não disse uma palavra sobre orientação sexual, pois isso não é determinante

Sobre a questão dos efeminados, é importante salientar que a discriminação dessas pessoas não se encontra, mesmo nos Evangelhos, em um ser autorrealizado como Jesus, mas sim em Paulo e no Antigo Testamento. Como o Cristianismo insiste em não se descolar deles, o Caminho de Jesus pode ser uma importante alternativa para inúmeras pessoas de sexualidades diversas que pretendem seguir com Jesus, não paralisando seu progresso espiritual por conta de preconceitos.

A questão das condutas e virtudes mais indicadas para a autorrealização é complexa – no fundo, não é questão nem de conduta nem de virtude, mas de vontade, de transcendência ao ego e até a si mesmo. O sexo, por exemplo, é meramente um meio que a natureza utiliza para se desenvolver. Em termos espirituais ou psicológicos, pode ser uma das manifestações mais puras da própria vontade de existir do ser – o tema é discutido também em brahmacharya.

Não se tira o mérito da boa intenção de Paulo e de tantos outros discípulos que de maneira sincera deram a sua vida e sua morte por Jesus e pela Igreja.

Essa mesma boa intenção está em muitos cristãos. Se eles acreditam que é necessário aceitar Jesus para ir para o céu, e caso contrário a pessoa pode – ou deve – ir para o inferno, é compreensível seu esforço em querer cristianizar o mundo.

Mesmo a mudança de seu nome de Saulo para Paulo é dotada de legitimidade. A letra p e a sílaba pa são associadas a “pai” em diversas línguas (assim como ma a “mãe”, exatamente por serem algumas das primeiras composições fonéticas do bebê). E Paulo (e não Pedro) tornou-se o pai (para o positivo e para o negativo) da Igreja Cristã, e sua doutrina veio a superar até mesmo a de Jesus. É comum nas igrejas cristãs nos dias de hoje falar-se mais das cartas de Paulo e do Antigo Testamento do que de Jesus.

Por quê? A explicação talvez seja que esse Cristianismo Judaico e Paulino é mais acessível, é mais simples de se resolver: basta que você aceite Jesus como seu senhor e salvador, se arrependa dos pecados e não abuse de certas regras, que irá para o céu. Mas, na prática, não é assim que funciona. Esse substitutivo tende a estagnar as pessoas em determinado ponto do caminho espiritual. De certa forma, o cristão estagna-se numa determinada visão, que tem dois mil anos de idade.

Assim como sabemos, pelo que foi escrito, que Jesus sabia do que falava, porque encaixa com a experiência existencial do ser humano, sabemos que Paulo não sabia do que falava em questões de autoconhecimento. O reino dos céus não é um lugar para onde se vai por bom comportamento e por reconhecer Jesus como o filho único de Deus ou como o próprio Deus. O reino dos céus é um estado de espírito ou, melhor dizendo, um estado de ser – ou de não-ser. É conhecido como samadhi no yoga ou nirvana no Budismo, é um estado extático; aquele que alcançou o místico sufi Mansour, um estado de totalidade.

Uniformização da fé cristã

As datas de escrita dos evangelhos canônicos são posteriores às cartas genuínas de Paulo, que se deram entre os anos 48 e 62 de nossa era. Àquela altura, a interpretação paulina já havia se consolidado como a corrente mais aceita entre as igrejas (que as próprias epístolas do apóstolo ajudaram a formar e unificar). Trechos das próprias epístolas revelam essa preocupação em estabelecer uma uniformidade ou padrão na fé:

Maravilho-me de que tão depressa passásseis daquele que vos chamou à graça de Cristo [Paulo e seu evangelho] para outro evangelho;

O qual não é outro, mas há alguns que vos inquietam e querem transtornar o evangelho de Cristo.

Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema.

Assim, como já vo-lo dissemos, agora de novo também vo-lo digo. Se alguém vos anunciar outro evangelho além do que já recebestes, seja anátema.

Paulo, em Gálatas 1.6-9

Da mesma forma, na 2ª Timóteo (2.16-18), que é um escrito pseudopaulino tardio (c. 90-140), o autor recomenda evitar “os falatórios profanos… Os quais se desviaram da verdade, dizendo que a ressurreição era já feita, e perverteram a fé de alguns”.

Em outro pseudopaulino, o autor de Tito (1.9) reafirma a importância da unificação da fé: “Retendo firme a fiel palavra, que é conforme a doutrina, para que seja poderoso, tanto para admoestar com a sã doutrina, como para convencer os contradizentes.”

O Caminho de Jesus

A explanação presente nesta página serve apenas como introdução, a fim de estabelecer algumas diferenças com relação ao Cristianismo e preparar terreno para a exposição do Caminho de Jesus em si, que se constitui de seus ensinamentos reais.

A sequência sugerida para esta página é A necessidade de religião.

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