Epístolas gerais

As epístolas gerais, ou epístolas universais ou católicas (no sentido original desta palavra: universais), são assim chamadas por terem, em geral, como destinatários originais as comunidades cristãs como um todo, ao contrário das “epístolas paulinas”, que eram destinadas inicialmente a comunidades ou pessoas específicas:

São assim os 7 documentos – nem todos cartas, mas também homilias e escritos de recomendações doutrinárias – nos quais o autor ou não se identifica ou identifica-se como um personagem diferente de Paulo (ou que a tradição não atribui erroneamente a Paulo, como Hebreus) e que estão ordenados em sequência no final da ordem tradicional da Bíblia, justo antes do Apocalipse.

Afora as epístolas gerais e as consideradas paulinas e Hebreus, o Novo Testamento (NT) é composto de quatro evangelhos, o livro de Atos dos apóstolos e o Apocalipse ou Revelação.

Vamos a elas.

Epístola de Tiago

Dentre todos os escritos da Bíblia, a Epístola de Tiago é talvez o que mais tarde foi aceito de forma universal pela igreja cristã, já por volta do fim do séc. IV.

Quanto à autoria, a Bíblia de Jerusalém (BJ) afirma que dificilmente se pode atribuir a Tiago, “o justo”, também conhecido como Tiago de Jerusalém e possível “irmão do senhor”, sendo assim pseudoepigráfica, por ter sido escrita diretamente em um grego rico e elegante. A Bíblia do Peregrino (BP) também considera improvável que o autor seja um dos outros dois apóstolos posteriores que tinham esse nome.

Sobre a datação, embora a epístola reproduza um conteúdo teológico e cristológico menos desenvolvido que o Evangelho de João e as epístolas paulinas “disputadas” tardias, seu conteúdo possui afinidade com escritos do final do séc. I e início do II (como 1ª carta de Clemente de Roma e o Pastor de Hermas, para não dizer da 1ª epístola de Pedro), pelo que muitos estudiosos (inclusive Crossan) a situam neste período. Tanto a BJ como a BP dão mais crédito a essa composição tardia que impossibilita que o autor seja este mais célebre Tiago da tradição.

A BJ argumenta que sua teologia pode dever-se à sua proveniência de comunidades judaico-cristãs herdeiras do pensamento original de Tiago.

É evidente que aqueles que desejam sustentar a autoria de Tiago devem situar a carta antes de sua passagem, em 62.

Primeira Epístola de Pedro

Esta carta, cujo autor se apresenta como “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo” (1.1) e “testemunha das aflições de Cristo” (5.1), tem sua autoria discutida entre os estudiosos.

Um dos argumentos que mais pesam a favor de sua pseudepigrafia é o aparente uso que ela faz de outras epístolas e a prioridade que se dá à “doutrina” delas, ao Evangelho de Paulo, em detrimento de ensinamentos originais e em primeira mão que um discípulo próximo de Jesus certamente teria.

Sua temática gira em torno da cristologia (a cristianização e divinização de Jesus), da parusia (seu retorno), dos costumes (ex. submissão e comportamento femininos – 3.1-6), dos “desejos carnais” estarem contra a alma (ex. 2.11) e temas afins.

Não tem muita coisa de ensinamento transcendental, como o de Jesus, na epístola. Até quando se refere claramente a palavras de seu mestre, por ex. em 2.12, está provavelmente citando Mateus (5.16) em um contexto menos espiritual e mais social, comportamental.

Para não dizer que não há conhecimento espiritual, existencial, autoconhecimento na carta, podemos citar o v. 4.8, aonde a segunda parte, “o amor cobrirá a multidão de pecados” remete não a palavras de Jesus, mas ao Provérbio 10.12.

Para Ehrman, “a linguagem, a datação, o estilo literário e a estrutura deste texto tornam implausível concluir que 1ª Pedro foi escrita por Pedro”, sendo mais provável que seja uma carta pseudepigráfica, escrita mais tarde por um cristão desconhecido em seu nome (Wikipedia), opinião esta compartilhada com Crossan, que a data por volta de 112 EC.

Pedro morreu no ano de 67, o que justifica o uso, por exemplo, de elementos da epístola legítima de Paulo aos Romanos (estimada entre os anos de 55-58), mas as coisas começam a se complicar quando se trata de suas semelhanças com Efésios, de cristologia mais tardia à época de Paulo e Pedro, e com a Epístola de Tiago, com a qual guarda semelhanças temáticas ou circunstanciais e temporais (conforme citadas na BP):

Concluindo, podemos dizer que consideramos mais provável que a “Primeira Epístola de Pedro” seja pseudoepigráfica mas, ainda que não o seja, seu conteúdo remete muito mais à tradição apostólica pós Jesus, ao “Cristianismo Paulino”, do que aos ensinamentos de Jesus propriamente ditos.

E a canonização e mesmo divinização dessas epístolas diz muito sobre o que o Cristianismo se tornou, sobre o que o Cristianismo de fato é, etimológica e factualmente.

Segunda Epístola de Pedro

Tanto a Bíblia de Jerusalém como a do Peregrino são conclusivas em afirmar que esta epístola não é de Pedro. A BJ a data na metade do séc. II e a BP entre o final do primeiro e início do segundo século, citando ainda que alguns acreditam que este possa ser o último escrito do NT (situando portanto a data próxima à da BJ).

Entre as evidências apresentadas na BP estão as repetidas vezes em que o autor “se trai”:

  • quando se distingue dos apóstolos (3.2)
  • quando se coloca na geração seguinte a dos primeiros apóstolos, em 3.4, na BP: “que dirão: O que aconteceu com a prometida vinda dele? Desde que morreram nossos pais, tudo continua o mesmo desde o início do mundo”
  • quando, em resposta à pergunta de 3.4 acima, justifica a demora do retorno de Jesus (argumento não necessário no tempo de Pedro) (3.5-9) – todo o capítulo 3 trata basicamente de responder à inquietação quando à demora da parusia e dizer como ela se dará
  • quando alude ao corpo paulino (3.15-16)

Ademais, tanto a BJ como a BP citam a notável diferença de estilo com relação à 1ª Pedro e o fato do capítulo 2 da epístola ser uma retomada de Tiago.

Muito do que dissemos a respeito do conteúdo da 1ª Pedro se aplica também a esta carta (para não dizer a todo o corpo de epístolas do NT): as recomendações doutrinais para os cristãos das comunidades são a tônica, em detrimento dos ensinamentos originais de Jesus.

Epístolas joaninas

As epístolas joaninas se situam em momento e contexto histórico diferente e posterior ao do Evangelho de João que, escrito por volta do ano 100, é o mais tardio dos quatro canônicos. A atribuição do próprio Evangelho de João ao discípulo João é problemática:

  • teria de obrigatoriamente ter sido escrito em uma idade avançada;
  • o autor não se identifica (referenciado internamente como “discípulo a quem Jesus amava”, a tradição o identificou com João);
  • a qualidade do grego empregado torna o texto incompatível com um pescador que, ao menos nos tempos de Jesus, com toda probabilidade não era falante desse idioma;
  • sua teologia ou cristologia é mais avançada do que a dos evangelhos anteriores (Mc, Mt e Lc).

Há diversas teorias entre os estudiosos a respeito da autoria das epístolas joaninas. A mais comum defende que seu autor (ou autores) é diferente daquele do Evangelho de João, ainda que ele eventualmente possa ter sido o autor de todas as três cartas.

Considerando a datação, o conteúdo e o contexto histórico dos quatro livros joaninos, fica mais difícil argumentar que tanto o evangelho como as cartas tenham sido escritos pelo discípulo e apóstolo João, pois sua longevidade e lucidez teriam de ser estendidas por ainda mais alguns anos. Faz mais sentido pensar que o autor de todos os documentos somente poderia ser o mesmo se não fosse ele.

Entretanto, o conteúdo teológico do evangelho é similar ao das epístolas, o que aponta para a composição de todos dentro de uma mesma comunidade ou escola, chamada hoje “joanina”, localizada possivelmente em Éfeso ou seus arredores, na região da Anatólia, na costa ocidental da atual Turquia (ver discussão na Wikipedia).

Primeira Epístola de João

A Primeira Epístola de João foi provavelmente escrita em Éfeso entre 95 e 110 EC (Wikipedia).

Chamada de carta ou epístola, este documento pode ter sido uma homilia registrada ou instrução escrita (BP).

Seu autor (ou autores, conforme leitura de 1.4-5) não se identifica. Atribui a si mesmo a condição de testemunha ocular (1.1-5 e 4.14). A tradição desde cedo o considerou o discípulo João, filho de Zebedeu, a quem atribuiu também o evangelho que leva seu nome.

É evidente que a carta faz uso do Evangelho de João (compare por ex. 1.4 com Jo 15.11 e 3.14 com Jo 5.24) e provavelmente se trata de um documento ligado à escola, comunidade ou tradição joanina, sendo composto por um ou uns de seus porta-vozes.

As interpretações conflitantes do Evangelho de João por católicos e gnósticos causaram divisão na comunidade joanina, e essa epístola foi escrita para destacar a interpretação católica dessa obra.

John Dominic Crossan, seguindo Brown

Segunda e Terceira Epístolas de João

A Segunda Epístola de João é uma carta curta de 13 versículos destinada “à senhora eleita, e a seus filhos” que, por seu conteúdo, com toda probabilidade é uma comunidade (igreja) e seus fieis (não especificados), em imagem comum no AT (ver por ex. Jerusalém e seus filhos e filhas em Baruque 4.8-12…).

A Terceira Epístola de João, destinada “ao amado Gaio”, com 15 versículos, tem aproximadamente a mesma extensão da anterior.

O autor de ambas se identifica no primeiro versículo de cada ( / ) como “o ancião”, no grego presbítero (πρεσβύτερος). O termo pode ser aplicado também para o líder de uma comunidade, não necessariamente velho. A maneira como é usado dá a entender que se trata de uma figura conhecida dentro dela, não se fazendo necessária uma apresentação. Esse pressuposto também favorece a opinião de que o autor, ao menos dessas duas cartas, seja o mesmo. Alguns estudiosos também observaram similitudes com a 1ª epístola joanina (ver discussão na Wikipedia).

A BP data essas duas epístolas no final do séc. I.

Epístola de Judas

A Epístola de Judas é um pequeno escrito de apenas um capítulo de escrito provavelmente pseudonimamente por volta do ano 100.

Quanto à autoria, certos pais da Igreja como Clemente de Alexandria atribuíram, seguindo seu versículo 1, a Judas, “irmão de Tiago, e logo também “irmão do senhor”, possibilidade corroborada por Marcos (Mc 6.3) e Mateus que o segue (13.55).

Na antiguidade, por falta de nomes compostos, era comum associar alguém ao nome do pai ou da localidade da qual provinha. Portanto, embora Judas e Tiago fossem nomes extremamente comuns na época, o fato de usar um irmão como referência é indício de que este possuía alguma notoriedade.

Outros dois Tiagos bastante relevantes aparecem no NT. Um é o discípulo, “filho de Zebedeu” de Mc 1.19 (seguido por Mt 4.21), morto no ano 44. O outro, “o menor”, apóstolo citado em Mc 15.40, alguns estudiosos e especialistas consideram que seja o próprio Tiago, “o justo”, mas que caso contrário tem data de morte estimada em, no máximo, 69.

A própria datação da morte de Judas ou Judas Tadeu, em geral, é de cerca do ano de 65.

Isso choca com a datação e o “eu literário” que o conteúdo mesmo da carta ajudam a estipular: conforme os versículos 3 e 4, “batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos”, o tempo da mensagem apostólica de Paulo (até no máximo o ano 65) e outros santos primeiros (dos quais o autor se exclui) já está no passado, como afirma mais claramente o v. 17: “lembrai-vos das palavras que vos foram preditas pelos apóstolos…”.

A “canonicidade” da carta também não parece ter sido aceita ou difundida entre os primeiros cristãos: a primeira referência a ela como canônica se dá em 180 (BP).

A opinião de estudiosos hoje é que se trata de uma pseudoepigrafia (BP e Wikipedia), em que se percebe a qualidade do grego empregado (BP), não dominado pelos supostos Judas.

Por esses fatores, a Bíblia do Peregrino a situa entre o final do séc. I e início do II.

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