A Bíblia não é a palavra de Deus

Muitos pregadores iniciam seus sermões ou frases com um “A palavra de Deus diz…” ou, o que é o mesmo para eles e seus fieis, “A Bíblia diz…” ou “Tá na Bíblia…”.

Usam também, de forma encurtada, “Palavra” como sinônimo de Bíblia: “Vemos na Palavra…” [de Deus].

Existem dois pontos enganosos nessas frases. O primeiro é fruto de tratarem a Bíblia como um único livro, como se fosse de um único autor, e o segundo é considerar que esse autor é Deus, o que confere autoridade a todo e qualquer texto que nela se encontra.

Bíblia (Aigars Jansons)
Bíblia © Aigars Jansons em Pexels

“A Bíblia diz…”

Designar a parte pelo todo (ou o todo pela parte) é uma figura de linguagem comum chamada sinédoque, um tipo de metonímia. Em seu uso, “a Bíblia” pode se referir a qualquer parte ou livro da Bíblia.

Esse tipo de construção invariavelmente tem uma interpretação imprecisa ou incerta. Avaliemos a frase: “O Brasil é cristão”. Quão imprecisa ela é? Segundo o Datafolha de 2020, 81% dos brasileiros são cristãos (para o IBGE, em 2010 esse percentual era de 87%). A afirmação “A maioria dos brasileiros é cristã” seria mais clara, mais precisa ou menos generalista.

A sinédoque é muitas vezes a forma mais adequada para uso coloquial, para a conversa informal. Mas em termos científicos ou em assuntos que remetem à própria ciência do conhecimento divino ou da vontade de Deus, a imprecisão da expressão “a Bíblia” – como “a palavra de Deus” – está custando o bem-estar, a sanidade mental, o progresso espiritual e às vezes a própria vida de inúmeras pessoas.

A Bíblia diz… precisamente falando, a Bíblia não diz nada! Da mesma forma que “o Brasil” não pode dizer nada! A Bíblia é uma coleção de livros (assim como “o Brasil” é uma “coleção” de pessoas); quem disse pode ter sido Paulo, um pseudo-Paulo, um pseudo-Pedro, algum evangelista, um escriba do séc. VII etc.

Como podemos afirmar, de forma precisa, que uma coleção de livros, uma biblioteca, pode dizer alguma coisa? “A biblioteca diz…”; não, quem disse foi um autor de algum livro que consta na biblioteca.

Aliás, o que mais vemos nos livros que compõem a Bíblia é que o escritor é diferente daquele que alega ser ou que a tradição supôs que ele fosse. E esses escritores pensam de maneiras diversas – e como veremos, não, a inspiração pura do Espírito Santo não ocorre, de maneira que não se pode justificar uma unidade da Bíblia por conta de sua “autoria”.

A generalização “a Bíblia” não seria problemática se a expressão não fosse levada a outro nível:

“A palavra de Deus diz…”

Como Bíblia e palavra de Deus viraram, para muitos, sinônimos, a sinédoque (imprecisa por natureza) faz uma escalada: agora é a palavra do próprio Deus que está dizendo. A questão de quem foi o autor, o(s) destinatário(s), em que circunstâncias, etc. está em segundo plano – na verdade geralmente em termos práticos nem é cogitada!

Vamos dar um exemplo prático de como isso é utilizado em sermões de diversas igrejas evangélicas:

A palavra de Deus diz em 1ª [a] Timóteo 4.1: ‘Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios‘”

E o que é a palavra de Deus neste caso? Aquilo que o escritor do livro conhecido como “1ª carta a Timóteo”, se passando por Paulo em época posterior ao apóstolo e a seu discípulo Timóteo, diz. E, como está na Bíblia, “a Bíblia diz”. E, como a Bíblia é a palavra de Deus, “a palavra de Deus” diz.

Discriminação sexual das mulheres na Bíblia e nas igrejas

Em Discriminação sexual das mulheres na Bíblia e nas igrejas, analisamos alguns versículos bíblicos especialmente problemáticos, como alguns (1Tm 2.11-15) dessa 1ª carta “a Timóteo”: “A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição…”

Imagine colocar isso na boca de Deus?

Entende aonde isso vai parar? “A palavra de Deus” legitima comportamentos que levam milhões de mulheres a experimentarem limitações psicológicas, problemas de autoestima, discriminação, e a sofrer violência psicológica e mesmo física.

“Ah! Mas esse era o costume da época.” É exatamente isso que estamos dizendo! Um costume de dois mil anos de idade que se mostrou ou se tornou inadequado não pode ser santificado, protegido, contra o próprio ser humano! Ao atribuir sua autoria ao Espírito Santo ou Deus, engessa-se a mentalidade cristã em um padrão de dois mil anos atrás.

Qual Bíblia é a palavra de Deus?

A quem acredita que a Bíblia é a palavra de Deus, a primeira pergunta que fazemos é: “de que Bíblia você está falando? Aquela que você tem em casa?”

Pois abramo-la nos versículos finais do Evangelho de Marcos. O trecho Mc 16.9-20 não é parte do original do Evangelho de Marcos. Sim, o livro que se supõe que o autor Marcos escreveu por inspiração acaba em 16.8. Os versículos subsequentes foram acrescentados por escribas posteriores. Gerações leram Marcos sem esses versículos. E estão na Bíblia.

Como Deus permitiu que sua palavra fosse tão adulterada ao longo dos séculos, sobretudo nos três primeiros? E que essas adulterações perdurassem ainda hoje como sua palavra?

Existem muitos pontos destoantes, frutos de variações, acréscimos e adulterações feitas por copistas, nas variadas versões dos originais dos livros bíblicos. Vamos pincelar alguns outros exemplos disso.

O perdão da mulher adúltera

Vejamos agora João 8.1-12. Esse trecho, que inicia-se em 7.53, contém uma das histórias e ditos mais conhecidos sobre Jesus, que costuma ser encenada nos filmes sobre ele e virou até ditado popular: “aquele que nunca errou (ou pecou), que atire a primeira pedra!”

A lei do apedrejamento pode ser encontrada, por ex., em Dt 17.5-7, onde as testemunhas devem ser as primeiras a arremessar as pedras.

O perdão da mulher adúltera é um evento de atestação única, encontrado somente em João (complexo 521 de Crossan), o último evangelho a ser escrito, aproximadamente no início do segundo século. Mas o que pesa contra a sua autenticidade é o fato dessa história não se encontrar em nenhum dos mais antigos e melhores manuscritos do Ev. de João. Foi adicionada por copistas posteriores, às vezes nessa posição do evangelho, às vezes no final dele, após Jo 21.25, e mesmo depois de Lucas 21.38. Ehrman ainda acrescenta:

… seu estilo de escrita é muito diferente daquele que é encontrado no restante de João (incluindo os relatos que vêm imediatamente antes e depois); e ela inclui um grande número de termos e frases que são, por outro lado, estranhas ao Evangelho. A conclusão é inevitável: essa passagem originalmente não faz parte do Evangelho.

Bart D. Ehrman, em O que Jesus disse? O que Jesus não disse? Quem mudou a Bíblia e por quê?, cap. 2 » A mulher flagrada em adultério

Apologistas cristãos podem argumentar que esse trecho foi inserido em João pois circulava na tradição oral. Mas mesmo o brilhantismo da história pesa contra a sua historicidade: como um evento tão significativo, que carrega uma mensagem tão bonita, pode ter passado despercebido por TODOS os evangelistas que escreveram Marcos, Mateus, Lucas, João e Tomé, para ser resgatado por um copista posterior?

Mas, como veremos, não são histórias assim as que mais pesam contra o argumento da inspiração divina da Bíblia.

Epístolas inteiras forjadas

Pelo menos três epístolas assinadas por “Paulo” são forjadas, não foram escritas pelo apóstolo, assim como ao menos uma quarta (Colossenses ou Efésios, se não ambas, e também 2ª Tessalonicenses).

Autorias de epístolas não paulinas são também discutidas.

Desconstruindo a Bíblia

Alguns exemplos na tradição paulina de absurdos da Bíblia que são, portanto, atribuídos a Deus, estão citados em Discriminação sexual das mulheres na Bíblia e nas igrejas, que é praticamente uma extensão deste artigo.

Lá, analisamos como essa sujeição a textos bíblicos, só por constarem na Bíblia e receberem assim o status palavra ou vontade de Deus, leva ao engano milhões de pessoas e está culminando, neste momento, no sofrimento existencial, algumas vezes dramático, de milhões de mulheres.

O Antigo Testamento

Vimos alguns textos do Novo Testamento e em como sua análise crítica pode nos mostrar suas épocas e motivações e quem foram seus verdadeiros autores (a saber, muitas vezes longe de ser “Deus”).

O mesmo pode se dizer do Tanaque, a Bíblia Hebraica, que conhecemos como o Antigo Testamento cristão. Ele é o livro de um povo, cujas narrações são compostas tanto por fatos históricos como por mitos e lendas, que têm por objetivo quase sempre trazer explicações transcendentais, divinas, para fatos ocorridos em sua história e até para condições ambientais que esse povo encontrou em sua trajetória.

Vamos a exemplos práticos disso.

Cronologias bíblicas situam a era dos patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó) por volta, no mínimo, do séc. XX AEC ou, no máximo, do séc. XVI AEC.

Acontece que a descrição dos eventos dessa era é feita invariavelmente sob os pontos de vista que os reinos de Israel e de Judá tinham nos séculos VIII e VII AEC, quando grande parte do núcleo deuteronomista da Bíblia foi escrito.

Um dos melhores livros para se compreender esse aspecto talvez seja A Bíblia desenterrada, de Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman. Em seu primeiro capítulo, À procura dos patriarcas, na seção Alguns anacronismos reveladores vemos:

Os arameus, que dominavam “as histórias do casamento de Jacó com Lia e Raquel e sua relação com seu tio Labão … não são mencionados como um grupo étnico distinto nos textos do Oriente Próximo antigo antes de cerca de 1100 AEC”, tendo se tornado relevantes nas fronteiras ao norte de Israel no início do século IX AEC, sendo às vezes aliado, às vezes rival de Israel pelo controle de territórios agrícolas.

Pois as histórias projetadas na era patriarcal, na relação de Jacó e Labão, expressam exatamente as complexas relações entre Aram e Israel no período entre IX a VII AEC, que viriam a determinar a repartição territorial entre esses povos que se deu nesses séculos.

As relações frequentemente hostis e conflituosas de Israel e Judá com Amon e Moab constituem outra história de anacronismo relevante do mesmo período.

Novamente, é projetado na era dos patriarcas um mito em forma de história que explicaria as próprias origens, indignas, dos moabitas e amonitas: seriam fruto de uma relação incestuosa entre Ló e suas filhas (Gn 19.30-38).

Como dissemos, longe de ser “a palavra de Deus”, a seção hebraica da Bíblia é muito mais a história registrada retroativamente com elementos tanto factuais como inventados, míticos e religiosos de um povo que, evidentemente, é contada a partir de seu ponto de vista e defendendo seus próprios interesses, que eleva a condição de seu Deus nacional, o Deus de Israel Yaveh (Jeová) à condição de Deus de todo o Cosmos. É mais correto dizer que reduz Deus à condição de Deus de Israel, como os cristãos fazem, reduzindo-o à de Deus Cristão.

A Bíblia como guia divino

Entre as formas pelas quais a Bíblia pode ser lida está a de orientação divina para a vida. Não poucos cristãos têm o hábito, rotineiro ou em fases de indecisão, angústia, dúvida, etc. de abrir a Bíblia atrás de respostas ou consolo.

E desde que a biblioteca de livros da Bíblia está repleta de histórias de ruína, maldição e superação de um povo, além de livros sapienciais, proféticos, etc. esse sistema de “respostas” invariavelmente “funciona” e valida para a pessoa o poder da Bíblia como palavra viva de Deus em sua vida.

Vamos a um exemplo. Uma pessoa angustiada e atrás de auxílio divino abre a Bíblia em Obadias (Abdias) 1.2-: “Eis que te fiz pequeno entre os gentios; tu és muito desprezado. A soberba do teu coração te enganou e recebe uma mensagem de humildade e de propósito divino mesmo na sua angústia.

Se ela abrir em qualquer página ou trecho da Bíblia e continuar lendo por um pouco se deparará com uma mensagem que pode se encaixar em sua situação de vida. Neste momento mesmo, abri minha Bíblia aleatoriamente na perícope de 1Sm 3.15-21. Logo me encontro com um “E crescia Samuel, e o Senhor era com ele…” Alguém que tenha aberto o livro nesse trecho pode interpretar isso como a confirmação de Deus para sua missão ou propósito.

A Bíblia com toda sua riqueza e amplitude temática, pode funcionar como uma conselheira ou motivadora mas, assim como essas, pode “errar” ou não dar o melhor conselho para o momento, como foi o caso da confirmação que Ana Grefrath sentiu ter recebido da Bíblia.

O delicado no caso da Ana e de tantos outros cristãos é que, dependendo do tipo de igreja que a pessoa frequente ou situação que passe dentro ou fora dela, a Bíblia, vista pela pessoa como “palavra de Deus”, pode ou deve estar do lado dessa instituição, “a casa de Deus”, podendo aparentemente confirmar situações realmente nocivas para a pessoa.

Fundamentalismo cristão e Cristianismo liberal

Nada de novo debaixo do sol. Tudo o que foi falado aqui e no artigo seguinte é conhecido e debatido abertamente por cristãos liberais ou modernistas, cuja abordagem do Cristianismo leva em conta o conhecimento moderno, a ciência e a ética. Naturalmente, eles estão dispostos a ler e discutir a Bíblia de forma crítica.

Já os cristãos fundamentalistas estão na contramão desse movimento: para eles a Bíblia e sua infalibilidade e inerrância estão acima de qualquer evidência científica, mesmo quando sua interpretação foge do senso comum.

Há diversos cursos de formação de teologia cristã “não totalmente devocionais”, nos quais a Bíblia é abordada também sob o ponto de vista crítico, mas os sacerdotes, em sua maioria, ao saírem deles não fazem esse conhecimento chegar às fileiras de suas igrejas.

A primeira crítica que se faz à visão cristã fundamentalista é que a Bíblia possui vários argumentos, que nem sempre são concordantes e são passíveis de interpretação. Por ex., tem-se claro que a “voz” humana mais importante na Bíblia cristã é a de Jesus. Se ele diz (cf. Mt 22:36-39, citando Dt 6:5 e Lv 19:18) que o grande mandamento da Lei é “amar o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, então o amor ao próximo deveria estar por cima de quase todas as questões menores trazidas na Bíblia, muitas das quais os fundamentalistas usam para justificar suas posições.

Fundamentalismo cristão nas igrejas

A discussão sobre a infalibilidade ou inerrância bíblica nem sequer é cogitada nas grandes igrejas cristãs brasileiras de nossos tempos – o cristão médio, talvez sobretudo o evangélico, é fundamentalista sem o saber.

Pastores e ministros invocam “a palavra de Deus”. Quando dizem “A Bíblia fala…” está pressuposto para todos que é palavra inspirada, divina, longe de qualquer discussão.

Determinados líderes cristãos nem sequer cogitam tirar a autoridade de algum versículo bíblico, talvez porque saibam que se um versículo puder ser questionado, a Bíblia estará desconstruída como unidade sagrada; e todo castelo de cartas ilusórias poderá ruir. Sua própria fé poderá estar em jogo se sua fonte de conhecimento espiritual estiver sob questionamento.

Inerrância e infalibilidade bíblicas

Infalibilidade bíblica é a expressão teológica que descreve a crença de que a Bíblia é isenta de erros em temas de fé e prática. Há uma grande diferença com relação à doutrina da inerrância, segundo a qual a Bíblia não contém erros de espécie alguma.

Wikipédia » Infalibilidade bíblica

Como já vimos no decorrer desta página, a Bíblia está longe de ser inerrante.

Infalibilidade bíblica” é um termo cunhado para dizer que a Bíblia, em suas questões fundamentais, sobretudo no que diz respeito a seu papel como um guia para salvação e a vida de fé, é completamente confiável.

“Infalibilidade” é uma palavra um tanto enganosa aqui.

Ambos os termos, “guia para a salvação” e “vida de fé” são muito relativos, com uma subjetividade e amplitude que permitem que cada um defina que matéria bíblica se enquadra dentro dessas categorias. A Bíblia possui preceitos morais importantes mas também, como vimos, preconceitos igualmente impactantes.

Cristãos que advogam pela mera infalibilidade, mas não pela inerrância, bíblica podem concordar com nosso ponto aqui demonstrado, que a Bíblia como um todo não é a palavra de Deus.

Não há dúvida de que a doutrina da infalibilidade bíblica, mesmo que tenha sido criada para servir de porto seguro contra os “ataques” da crítica bíblica e científica, é uma evolução com relação à inerrância, já que está disposta a analisar e aceitar evidências científicas e históricas, recuando seus pontos “inegociáveis” a limites que podem chegar até onde toda escritura religiosa tem seu denominador comum: o mistério transcendental e inefável que podemos chamar Deus.

Deus

Até agora, nos concentramos na primeira parte da sentença A Bíblia não é a palavra de Deus: a Bíblia. Agora falemos a respeito de Deus ou, neste caso, “Deus”.

Esse Deus que tem uma personalidade, uma palavra determinada, uma escritura, um povo escolhido, um “plano de salvação” mental, é criação da mente humana.

Projetamos nossos medos, preconceitos, suposições, tradições, cultura, códigos de ética sociais (etc.) naquilo que não pode ser explicado, dito, expressado, delimitado.

Assim, ao referir-nos a Deus como uma entidade (com traços demasiado humanos, diga-se) limitamos aquilo que é ilimitado. O Deus personificado é um homem ampliado.

A verdade é que cada pessoa tem o Deus que é capaz de conceber. (Vivekananda)

Assim como religiões hindus teístas como a Hare Krishna, o Cristianismo cultua uma personalidade como sendo Deus: em seu caso, o Senhor Jesus Cristo.

O ponto crítico para o cristão ou teísta é que esse Deus pessoal, antropomorfizado ou humanizado que eles concebem, aquele que segundo a Bíblia conversa com Moisés e os profetas, não existe.

A eleição de um único ser humano para exercer tal função transcendental, a de Deus, ou mesmo de ser (exclusivamente) o próprio Deus (qualquer que seja a visão que se tenha da Trindade), como é o caso da figura cristã de Jesus Cristo, também está incorreta.

Mas não existe um Deus?

O fato de não existir um Deus pessoal como o retratado em todas as “Suas” participações pessoais na Bíblia e em outras escrituras não implica no fato de que não exista um princípio espiritual da existência, que está no interior de cada ser e em tudo o que existe, que parece múltiplo mas que também se experiencia como Uno, que em seus aspectos totais transcendental e emanente (energético) pode ser chamado de Deus ou Existência, o Todo, o Absoluto, etc.

Dessa forma, indivíduos inspirados podem proferir palavras que podemos considerar “inspiradas divinamente”, mas isso não significa que essas palavras constituam a vontade de um Deus personificado, porque ele não existe! Na verdade, se dermos vasão à expressão de nossas inspirações, ela estará sempre condicionada por nossas limitações e conhecimento mentais, por nossa visão de mundo, etc. É por isso que “Deus” quase sempre se parece com um ser humano.

O transcendental é inefável, indizível, intraduzível. Aspectos seus são melhores reproduzidos pelos artistas, músicos, poetas, místicos, pessoas realmente religiosas. Não há como pegar nenhum conteúdo desses e transformar em uma escritura de regras, cuja autoridade divina não se poderia discutir, pois os aspectos desses conteúdos feitos sob inspiração que se prestariam a isso são justamente os que não têm muito de “divino”, são fruto de nossa própria mente.

Dito isso, acreditamos que qualquer postura que envolva um conceito fechado da realidade (portanto, uma conceituação mental do que ainda não pode ser explicado) não seja a mais indicada para o buscador espiritual (para não dizer para o ser humano em geral), a saber, aquele que quer saber quem de fato ele mesmo é, o que ou quem é esse Deus e o que é essa divindade ou divinidade presente em nós.

Materialismo, princípio espiritual, Deus

Há duas visões de mundo: a que acredita que o mundo físico ou natural seja tudo o que existe, que podemos chamar Materialismo, e aquela que acredita que exista um “princípio espiritual” além da matéria, do mundo físico.

A discussão do que é a consciência está no centro desse debate. A questão do que se é é tratada melhor em outros pontos deste site, mas seu ponto em comum com aquilo que se pode chamar Deus é esse princípio espiritual que se encontra em nós e em todos os seres.

Muitas vezes nos colocamos rótulos como crente, descrente, ateu, cético, materialista, agnóstico ou espiritual, mas o que isso significa difere para cada um de nós, pois cada um desses nomes tenta classificar ou qualificar perspectivas e experiências dentro de espectros que, em última análise, totalizam 8 bilhões de caminhos e visões diferentes.

Einstein certa vez disse que havia duas formas de ver a vida: uma é acreditar que não existe milagre. A outra é acreditar que tudo é um milagre.

“Palavra de Deus” x O existencial

O cristão arquetípico busca na Bíblia seu manual de conduta. E uma vez que ela foi escrita tomando-se em conta também o progresso moral, intelectual e social da humanidade, sem dúvida conterá preceitos bons para a vida. Mas também possuirá conceitos ultrapassados, antiquados, injustos, como os que vimos com relação às mulheres.

Como vimos, nenhuma escritura, nenhum conjunto de ensinamentos específicos é a obra exclusiva ou especial de um Deus – assim como podemos dizer que não há palavra que não seja de Deus.

Nisto, percebemos que nossa própria inspiração espiritual não é necessariamente inferior àquelas que foram santificadas e canonizadas.

O conteúdo contido nas escrituras oficiais relata experiências vividas por outras pessoas e chega até nós através da linguagem, da mente. É informação de segunda mão, não é mais conhecimento experiencial.

Na vida, passamos por nossas próprias experiências, aprendizados, erros que devem receber o devido valor em nossas ponderações, em nosso caminho. Quanto mais avançamos e descobrimos o real ou divino em nós, mais estamos em condições de avaliar a validade de nossa própria experiência existencial.

Muitas vezes, devido à errônea autoridade que se atribui a escrituras sagradas, reduzimos, podamos e coibimos nossas experiências para encaixar no que se está escrito nelas. Sujeitamos o existencial, o real, o vivido, ao mental, ao escrito, ao conhecimento de segunda mão, fossilizado, quando na verdade a prioridade deveria ser dada ao real.

Um exemplo prático disso são pessoas que vivem uma vida infeliz dentro de relacionamentos abusivos, afinal está escrito que “o que Deus ajuntou não o separe o homem”.

Há casos, entretanto, que a mente já não tem força para impor sua escritura à realidade, ao que está existencialmente de fato acontecendo à pessoa: é o que vemos na maioria dos relatos de experiências de quase morte, que não possuem quase nada de conteúdo realmente bíblico.

A escritura verdadeira é aquela que é existencial: o Universo, os seres vivos, tudo o que existe, o amor, etc. são as verdadeiras escrituras de Deus.

Lucas e Tomé relatam que Jesus disse que o reino de Deus está dentro de nós (Lc 17.21 (ARA) e To 3). Buscar nas escrituras é buscar fora, é tentar encontrá-lo através do filtro mental de alguma outra pessoa, que muitas vezes mais atrapalha do que ajuda na sua própria busca. Mas não temos que sumariamente descartá-las; somente que a prioridade deve ser a existencial, aquilo experiencial, que você vive. Aonde a escritura fala contra isso, contra o amor, contra o bom senso, não há motivo algum pelo qual se deva considerá-la por cima dessas coisas.

Quando alguém se converte em pura cabeça e perde toda sensibilidade, toda consciência, todo viver; quando alguém se converte em pura teoria, em dogmas e em escrituras e palavras e palavras que giram em torno da mente. Um dia, se a pessoa é consciente, há de abandonar tudo isso.

Osho, em A arte de morrer, p. 119p (PDF em espanhol)

A verdade é que confiamos exageradamente nas escrituras porque estamos um pouco perdidos, não nos conhecemos, estamos inconscientes. Diga a alguém que atingiu um grau razoável de autoconhecimento, de profundidade dentro de si, que Jesus é o caminho, a verdade e a vida, que ninguém vai ao Pai senão por ele (Jo 14.6) que essa pessoa, humildemente, se rirá.

Porque o real, que é a verdade, e a vida, pulsam dentro de cada um de nós – e todos nós temos o caminho conosco, se é que estamos mesmo distantes de casa; eles não são, existencialmente, antropomorfizados e não têm porque serem considerados assim. Jesus existiu, foi real, ou espiritual. O Jesus Cristo que a tradição inventou é uma ilusão.

Às vezes a Existência está dizendo o oposto da Bíblia. Seguir cegamente à escritura não é holístico, não é espiritual: seria agir puramente com a cabeça, muitas vezes contra o coração e contra seu próprio ser, que afinal de contas é a mais certa manifestação de Deus que você pode ter.

Conheça também

Noções do Grego Bíblico: Gramática Fundamental (Lourenço Stelio Rega e Johannes Bergmann)

Noções do Grego Bíblico: Gramática Fundamental

(Lourenço Stelio Rega e Johannes Bergmann)

Este livro é uma gramática e método de aprendizado completo do grego koiné ou bíblico, feito para o estudo autodidata do idioma.

A gramática, fruto da apuração do método de ensino do grego ao longo de décadas pelos professores Lourenço Stelio Rega e Johannes Bergmann, fornece todos os elementos necessários para a aprendizagem do grego utilizado no Novo Testamento.

Passo a passo, o estudante vai se familiarizando com as formas, as palavras e suas diversas flexões e casos.

Adquira o livro na Amazon BR e apoie este site.

chela » O caminho de Jesus » Libertando-se das crenças » A Bíblia não é a palavra de Deus

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *