O uso ameríndio da Ayahuasca

As combinações de plantas que resultaram no chá conhecido como Ayahuasca foram concebidas há séculos, e possivelmente milênios, pelos nativos das Américas. Sabemos que os nativos são profundos conhecedores de seu meio ambiente, o que envolve entre outras coisas domínio das propriedades medicinais e terapêuticas das plantas e de materiais animais. Suas tentativas, testes e observações empíricos configuram assim uma ciência, que não se aparta da alma como às vezes a nossa o faz, mas que igualmente abarca mais conhecimento com o uso e autouso das plantas e suas derivadas formulações e misturas.

Ameríndio, de Vincent Tan
Ameríndio © Vincent Tan em Pexels

Adicione-se a esse conhecimento o fato de que, conforme afirmam os ameríndios, as próprias plantas (entre outros seres) se comunicam com eles, revelando a forma ideal de seu uso.

Wikipédia: Lista dos povos indígenas que utilizam Ayahuasca

Objetivos das experiências com o chá

Entre os principais objetivos e experiências dos ameríndios na ingestão da Ayahuasca estão:

  • perceber, ver (ter a visão, miração) e viver o lado oculto da experiência sensorial cotidiana, lado o qual para muitos ameríndios é o aspecto verdadeiro do mundo e que sustenta este mundo sensorial ordinário, como ele realmente é e é percebido por seres evoluídos e poderosos, que não possuem mais desejos e vivem em êxtase contínuo. As formas físicas manifestas são assim percebidas como ilusórias, exatamente como nos conceitos indianos de maya e devas. Assim, é a maneira de, por algumas horas, viver como esses deuses, sem desejos e apartado das limitações de tempo e espaço,
    • e aprofundar-se no estudo xamânico de conhecimento e visão, guiado por um xamã ou por um indivíduo com grau espiritual avançado;
    • quando estamos nessa outra realidade, a experiência cotidiana parece irreal, da mesma forma que encaramos, muitas vezes, essa outra realidade como ilusória quando estamos no estado sensorial ordinário de consciência.
[O índio siona (no território colombiano)] Ricardo Yaiguaje (1900-1985), (…) filho de Leonides Yaguaje, [este] talvez o último grande mestre xamã no Putumayo, frequentemente repetiu que geralmente três noites, expressadas como “três casas”, são necessárias para ver os desenhos de um domínio, conhecer o seu povo e aprender seus cânticos [e tocar as flautas]. Cada noite, o novato viaja um pouco mais longe, esperando que com a terceira noite [1 noite a cada 2 ou 3 dias]* ele consiga ver tudo** e dominar os cânticos dos seres que vivem nesses lugares. [tornando-se assim um xamã e obtendo dau, poder xamânico dos Siona, como aconteceu com o irmão de Ricardo, Arcenio; Ricardo falhou devido à interferência por meio de feitiçaria de outros xamãs invejosos do poder de seu pai Leonides, os quais enviaram entidades maléficas a sua experiência. Seu irmão Arcenio interveio e socorreu-o dessas, purificando-o com água.]

** “Continunando a tomar yagé, você se tornará uma pessoa que pode ver tudo”, eles [o povo do yagé ou espíritos] disseram.

Esther Jean Landgon em O uso Ritual da Ayahuasca, p. 72-74; 85-92

* Durante essa jornada iniciática. O médico naturopata francês Jacques Mabit chegou a comungar o chá 1 vez por semana por 12 anos entre xamãs e mestres amazônicos. Geralmente, o chá é consumido a cada 14 dias para a maior parte das religiões ayahuasqueiras: período talvez bem ajustado para a mente ocidental, porém se a sua mente se acelera demais após o uso, um espaçamento até maior pode ser recomendado.

  • ter contatos com outros espíritos*, como os de homens, animais e de fenômenos e formações naturais, que estão em outras dimensões ou planos da existência,
    • e assim obter deles conhecimento e proteção;
    • a ingestão do chá seria a maneira mais segura e eficaz para entrar no mundo dos espíritos;
    • os xamãs, pajés e ou curandeiros são os que conseguem adquirir maior conhecimento, habilidade e poder para adentrar, interagir e negociar nesses outros reinos;
  • a ascensão** pela árvore genealógica do indivíduo, podendo mesmo levá-lo até as origens mais remotas e ancestrais da vida a do espírito, fazendo-o perceber mesmo a cosmogênese universal, os mistérios e motivos da criação;
  • experimentação e compreensão de que o espírito é distinto do corpo, o que também facilitaria e prepararia a pessoa para a própria desencarnação, uma vez que mostra o que a pessoa poderia encontrar se ela ocorresse hoje, e até mesmo passos futuros dentro dessa possibilidade. Por isso a experiência promovida pelo chá é chamada às vezes de pequena morte;
  • limpeza do corpo e da mente, que podem se manifestar através de vômitos e menos comumente de evacuação. Entre os ameríndios, é também comum esse fenômeno de vomitar ou vomitar muito(!);
  • curar-se de algum mal ou doença físicos;
  • obter visões, revelações, previsões e favores para sustentação do povo, como a caça, a colheita e a autodefesa,
    • através, também, do próprio contato com os espíritos da natureza (dos animais, das plantas, da floresta, do sol, etc.)

* Note que se por um lado somente os deuses podem apreender a realidade última, por outro no caminho até ela está esse mundo espiritual, ainda muito mental, onde coabitam seres dos mais ignorantes aos mais elevados, fazendo-se importante um preparo prévio (ver abaixo Abstinências) antes da experiência a fim de colocar-se mais próximo às faixas elevadas.
** Ao menos para os Barasana, o cipó da Ayahuasca possibilita também a descida genealógica, efluindo assim efeitos para os descendentes de quem as toma. Além de cipó, esse povo visualiza o chá como uma sucuri – que tem um significado cosmogônico primordial para eles – dentro do corpo. (Pedro Luz, O uso ritual da Ayahuasca, p. 55-56)

Os ícaros (cantos)

O chá Ayahuasca, bem como outras combinações e similares da caapi e da chacrona, é utilizado na tradição e ritualística xamânica – aonde o xamã prepara o chá e comanda a cerimônia na qual o grupo irá tomar -, mas não exclusivamente nessa forma ritualística. Em diversas tribos, como as dos Kaxinawá, o cantador é quem prepara, serve e conduz a cerimônia e os participantes, através do canto, pelo labirinto das visões e posteriormente faz com que retornem à percepção ordinária. O canto expressa a conversa do cantador e ou do xamã com os seres do outro lado e determina o conteúdo e desenrolar das visões, do início ao final da experiência, podendo ter diferentes tons de voz e ritmos para cada etapa. Tons mais agudos alcançam e chamam os espíritos, que podem ser intuídos ou mesmo visualizados corporalmente. Um cantador mal-intencionado poderia também punir os participantes com visões atormentadoras e sem proveito.

Podem ocorrer versos de língua e significado desconhecidos, dos ouvintes e mesmo do cantador, que podem aumentar a experiência intuitiva ou de camadas não discernidoras da mente. Um aspecto cíclico-repetitivo faz com que o participante não se atenha mais no significado das palavras, e entre ou flua na energia do canto. Assim, o próprio canto é um potencializador do efeito do enteógeno.

Dependendo da cultura, os cantos são mais ou menos padronizados e conhecidos previamente pelos participantes, o que não lhes tira o caráter de improvisação na ordem dos versos, tom da voz, etc. O cantador é, de fato, por determinado período de tempo, um líder espiritual, que pode conduzir as experiências de todos segundo as tradições culturais do povo, reforçando sua coletividade e união, logo também a sua segurança.

O ícaro do cantador sobe ao céu e, dependendo do grau de conexão do participante com o canto, pode descer com a cura para esse participante. (Barbara Keifenheim, O uso ritual da Ayahuasca, p. 122)

Em outros grupos, é também aquele que cozinha os ingredientes, mesmo não sendo cantador, quem lidera a reunião.

Ao contrário do que acontece em diversos grupos indígenas amazônicos e em outros grupos Pano, entre os Kaxinawá a utilização de alucinógenos não está associada forçosamente à práxis xamânica. Para a sua interação com os espíritos, os xamãs Kaxinawá utilizam preferencialmente o tabaco (dume)*. Somente em casos excepcionais, quando seus métodos não alcançam a cura almejada, é que eles bebem a droga nixi pae [como chamam a Banisteriopsis caapi e a bebida resultante de seu preparo] em sessões especiais para dialogar com os espíritos.

*A fumaça do tabaco tem o poder de embriagar os espíritos e assim auxiliar o xamã a liberar um espírito humano preso por eles.

Barbara Keifenheim, em O uso ritual da Ayahuasca

Através dos ícaros (cantos) e também por meio de invocações quando do preparo do chá e até mesmo na escolha das plantas que o constituirão, o xamã ou o cantador, pelas cenas simbolizadas nos cantos, conduz os participantes do ritual até o mundo espiritual.

Lá o chá pode revelar o próprio espírito dele ou ainda espíritos chamados às vezes como “o povo do yagé” (os que estão do outro lado), que recebem os que estão adentrando em seus domínios. Dependendo do contexto, pode revelar também ao indivíduo merecedor algum espírito amigo ou mesmo protetor ou guardião.

Nessas cerimônias cantadas os bebedores do chá, mesmo mergulhados em suas visões, nunca deviam perder o contato com os ícaros, ao qual poderiam agarrar-se em face a algum apuro e teria o poder de trazer-lhes de volta a salvo da experiência.

São fatores gerais de influência nas visões: o ambiente, o(s) condutor(es) das sessões ou rituais – seja por seu nível evolutivo ou por suas crenças e psicologia -, as músicas, a alimentação diária do participante em sua vida e também nas vésperas, sua disposição e atitude mental perante à vida e ao chá.

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Usos não indígenas da Ayahuasca

Nesta página tratamos quase exclusivamente do uso indígena da Ayahuasca como forma de contextualizar historicamente os efeitos do chá, pois a maioria, se não todos, também foram observados entre os bebedores não indígenas, desde os primeiros deles (os seringueiros amazônicos que tiveram contato com os nativos) até os atuais.

Alguns exemplos são a ocorrência do voo xamânico ou viagem astral, presságios, curas, integração com a natureza e o cosmos, etc.

Na página Ayahuasca abordamos, entre outros assuntos, as experiências e transformações que um consagrador também não indígena pode esperar ter.

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