Maya (māyā): o “sonho” da consciência

A palavra sânscrita maya (māyā), por se referir a um conceito não abarcado no Ocidente, não tem uma tradução exata em suas línguas. Entre os significados que melhor a descrevem estão sonho, ilusão, engano, mágica, truque, encantamento, uma imagem ilusória.

Maya (māyā): gênero: fem. (sânscrito)
➡️ Como afixo de palavras, maya (maya) pode significar “feito de”, “consistindo ou composto de”.

A maya universal

A maya universal é o sonho, ilusão ou mágica da consciência que projeta (aparentemente) todo o Universo manifestado (ou mesmo incontáveis universos), nosso mundo “natural”.

Maya é o upadhi da consciência, o véu da “realidade” manifestada sobre o real, uma sobreposição que a encobre mas que é também seu veículo de manifestação.

Maya - Caleidoscópio
Psychedelic, Rosette, Kaleidoscope image © Placidplace em Pixabay

Real e irreal

Maya pode ser entendida como o aspecto manifestado e mutável de brahman, ou seja, daquilo que em sua essência é imanifesto e imutável. Nessa visão maya seria real, pois é a forma criada a partir da vibração dAquele sem forma e, portanto, parte real dele. Mas em última análise é ilusória – por isso diz-se que maya ou “o mundo” é real e irreal.

Por confuso que pareça, pode ser mais preciso (sempre aproximadamente) dizer que maya não é real nem irreal – essas coisas não se propõem aqui.

Pensadores do Vedanta darshana às vezes descrevem maya como “irrealidade”: seria a ilusão que faz com que percebamos o Universo como real, mesmo ele sendo irreal e distinto do espírito ou atman. (Para entender melhor este ponto de vista, veja prakriti.)

Somente o ser, o si mesmo, é a realidade. O mundo e tudo mais não o são. O ser realizado não vê o mundo como diferente de si mesmo.

Ramana Maharshi, em Questionário para a iluminação (Diálogos)

Vivekananda defende que atribuir o simples conceito de ilusão a maya é incompleto e até errôneo, pois maya não é simplesmente uma teoria, mas um enunciado de fatos sobre o universo tal como ele é: “tudo que tem forma, tudo o que evoca uma ideia em suas mentes, está em maya, pois tudo o que está submetido às leis de tempo, espaço e causalidade está em maya”, diz o discípulo de Ramakrishna.

“Quando você começar a questionar o seu sonho, o despertar não estará longe.”

Nisargadatta Maharaj, em Eu sou Aquilo (final do cap. 21)

Maya e a experiência

Maya
Psychedelic © chandrika221 em Flickr

Maya é o conceito usado para significar as manifestações (objetos, corpos, mente, etc.) da realidade, do real (atman ou brahman).

O poder da energia ou shakti como maya cria a mente e a matéria, que velam e contraem a consciência, criando assim os mundos manifestados. Esse efeito é chamado de upadhi no Vedanta darshana. Assim, onde não há mente, não há limitação, nem a criação e percepção sensorial de “mundo” (domínios físicos, astrais, etc.). Através da mente, o ser o experiencia.

Maya está dividida em 24 princípios cósmicos: prakriti, consistindo dos gunas rajas, tamas e sattva; mahat (mente cósmica); ahamkara (consciência do eu, sentido do ego); os onze órgãos sensoriais (a mente, os olhos, os ouvidos, os olhos, a língua, o nariz e as mãos, os pés, o órgão da fala, e os órgãos de reprodução e evacuação); os cinco elementos rudimentares (som, toque, sabor, cheiro e visão); e os cinco elementos grosseiros (éter [akasha: espaço], água, terra, fogo e ar). Através da ação e da interação desses 24 princípios, maya cria o universo.

Nota de Carlos Alberto Tinôco ao comentário de Shankaracharya ao Shvetashvatara Upanishad, em As Upanishads

Espaço e tempo estão em maya. Não só o espaço percebido na dimensão material, mas também todos os outros planos de existência, do mais sutil ao mais denso. Tudo o que conhecemos e imaginamos é maya. Fora de maya, só existe essa Existência Pura, que não pode ser entendida pela mente.

As camadas de Maya

Nossa percepção do Universo está condicionada aos veículos de manifestação da consciência que temos, que são nossos corpos. Pode-se dizer que diferentes constituições corpóreas, em outros animais e formas de vida, tornam perceptíveis “diferentes mundos”.

No âmbito da consciência humana foram identificados cinco camadas (koshas) de manifestação e percepção, os maya koshas ou invólucros de maya, do mais externo para o interno: corpo físico ou de alimento, corpo energético, corpo mental sensorial, intelecto e corpo causal ou camada do desfrute da existência.

Percepção existencial e sonho

Como afirmou Vivekananda, “maya” não é um conceito filosófico, mas existencial. É a constatação feita a partir da experiência daqueles que foram fundo dentro de si mesmos, que se autoconheceram. Eles estão tão autoconscientes de sua testemunhalidade, que afirmam que a realidade exterior é ilusória. A partir de sua perspectiva experiencial interior, supersubjetiva, este mundo e nossa experiência nele parecem um sonho, é como se estivéssemos sonhando; portanto, não seria “real”.

Adicionalmente, da mesma forma que, durante o sonho, não costumamos duvidar de sua realidade, é possível que, no futuro, retrospectivamente recordemos de nossa vida como um sonho passado.

Ramana Maharshi, um mestre autorrealizado como Sidarta Gautama ou Jesus, costumava afirmar que a única ou maior diferença entre o sonho e a nossa realidade é a duração.

A princípio, isso desde o ponto de vista do experienciador (que afinal de contas é o único experimentável), pois as entidades do sonho são ou costumam ser criações exclusivamente mentais, ao passo que no mundo as outras entidades também são seres reais – e sonhantes. Contudo, se considerarmos a consciência macrocósmica, essa correspondência pode se tornar espantosamente exata ou ao menos uma boa analogia didática: todos os seres sendo o sonho da consciência cósmica una, como Yogananda costumava chamar o Universo, “um sonho de Deus”.

Não se deixe seduzir pelas aparências, não pense senão no Espírito que está presente em todas as coisas e as anima, não veja senão o divino em tudo!

Sudei Babu, astrólogo e mestre do yoga tibetano, relatado por Paul Brunton em seu livro A Índia Secreta (de 1934)

A meditação é quase sempre fundamental para essa autorrealização. Estar “interiorizado”, neste sentido, é estar em estado meditativo ou em zen, e nesse estado o mundo parecerá ilusório, pois estamos na consciência, naquilo que percebe.

Quanto mais interiorizados estamos, menos o mundo pode nos afetar. Ao passo que na condição extremamente exteriorizada que a maioria de nós se encontra, o mundo nos afeta profundamente e sentimos mais intensamente que ele é real. Estamos identificados com a ilusão.

Os sonhos e projeções dos corpos de maya

Para complicar um pouco a nossa distinção do real ou irreal, no âmbito de experiência de nossos corpos nós estamos continuamente sonhando, rememorando e projetando. Criamos sonhos dentro do “sonho” de maya, mesmo quando separados, por projeção astral ou pela morte, do corpo físico, ou seja, em corpo astral.

A ilusão maior

A maior ilusão é a de eu individual. A partir dela se desenvolvem todas as outras, a começar ou continuar pela mente sensorial.

Maharshi a explica na passagem Do sono profundo à iluminação.

Também desse mestre é a poderosa técnica meditativa de autoconhecimento Quem sou eu?.

Essa ilusão do eu ou ego não é boa ou ruim, é natural, é o meio pelo qual a consciência se manifesta.

Osho é um dos místicos que defendem que o ser humano precisa, primeiro, se cristalizar, se realizar como ego, para então poder observá-lo e deixá-lo conscientemente. A ilusão do ego ou eu individual não é necessariamente uma coisa ruim, é mais um reflexo ou pedaço do eu ou ser real, de maneira semelhante como a ilusão do amor romântico – que esta alma necessita de ilusão, talvez uma ilusão atrevida -, canalizado a um ser único, é um reflexo ou pedaço do amor, que é outro aspecto do que somos. Isso explica também porque muitas vezes quando o perdemos, também perdemos a ilusão da vida, ao menos até que a roda da vida ou sua ilusão carreguem a saudade pra lá (vamos ter problemas para traduzir esta página para outros idiomas).

Ilusões mentais e religiões

Tudo o que você não sabe é perfeito. Tudo o que você sabe é imperfeito, fraudulento.

Nisargadatta Maharaj, em Antes da consciência (15 de julho de 1980)

Se admitimos a percepção dos universos sensoriais como “oníricos”, fica fácil perceber o caráter ilusório de algo muito mais evanescente, como nossos pensamentos e memória, com todos os nossos conceitos, filosofias e religiões.

Sim, o Cristianismo é uma ilusão, como o é o Judaísmo, o Islamismo, o Budismo, as religiões hindus, etc., com suas bíblias, vedas e alcorões. O mesmo pode se dizer de todos os nossos ismos dos campos filosófico, social, político, etc.

Ainda que inevitavelmente nossa mente desenvolva afinidades, ao nos identificarmos com qualquer um deles estamos nos apegando à ilusão, criando ego.

A pedra de toque das religiões, mestres e caminhos espirituais é o quanto eles estão trazendo autoconhecimento ou realização espiritual sem aprisionamento. Podem ser importantes em determinado momento, mas idealmente teriam de ter uma saída, um descarte deles mesmos. Não obstante, muitas religiões institucionalizadas (assim como “mestres” egoicos) tendem, ao contrário, a envolver seus praticantes em um processo cíclico dentro delas próprias (por ex., da transcendência de Jesus retorna-se para um Levítico) – o “ponto”, aquilo para o qual elas apontam, como a realização existencial de Deus (através da qual elas podem ser descartadas), é perdido em favor do teórico, do mental, da escritura, dogma ou rito -, cabendo aos devotos ou discípulos aprenderem por si sós e com ajuda externa a superá-las e deixá-las.

As opiniões dos outros são maya. O mental é maya, o astral é maya; só o que não é maya é o ser.

Mesmo que erremos miseravelmente quando tentamos descrever as realidades para além de nosso mundo, o esforço realmente religioso muitas vezes é uma necessidade existencial, porque sentimos, sabemos, que não somos só este corpo, esta mente – há algo mais, algo além de “nós”, e queremos descobri-lo, chegar até isso, vivenciá-lo. E o primeiro que encontramos são essas instituições religiosas.

A religião institucional geralmente é um opaco reflexo de seu modelo ou precursor, como Jesus no Cristianismo e Sidarta Gautama no Budismo – pessoas reais, com seus próprios caminhos e autorrealização reais, que seus seguidores, sem o mesmo grau de autoconhecimento, tentam imitar, costumando criar substitutivos (por ex., Paulo no Cristianismo e os compiladores dos primeiros suttas budistas).

A autorrealização não é tão comum. O conhecimento intelectual é mais fácil. Então esses substitutivos vêm a se tornar as normas ou dogmas quando isso tudo passa para o campo social e vira uma Religião – requer política e é nivelado pelo grau de autoconhecimento desses seguidores ou, pior ainda, das massas, e não dos mestres.

O que na boca de Jesus e de Buda eram insights sobre a realidade, sobre o reino de Deus ou sobre o nada, na religião institucionalizada vira mera moralidade, preceitos, mandamentos – todos eles substitutivos extremamente insuficientes da experiência real.

A experiência transcendente é substituída pela crença. Acredite, e você nunca descobrirá.

Não obstante, sem a capa do Cristianismo ou do Budismo talvez os ensinamentos do Jesus ou do Buda reais não chegariam até nós. E uma vez que a maioria de “nós”, no Ocidente, “precisa”, ou melhor, é compelida a absorver a filosofia judaico-cristã, um caminho pode ser cavar os textos que chegaram até nós até encontrar a essência, o Jesus real por trás das camadas doutrinárias que o recobriram.

“E assim você revela, que nada é real

Nada além de você

Steve McDonald em All You Can Know, disponível também na playlist Seleção…
Jnana-Yoga (Swami Vivekananda)

Ver também

Jnana-Yoga: o caminho do conhecimento (Swami Vivekananda) – pdf

No livro Jnana-Yoga, somos conduzidos por Vivekananda através de uma profunda investigação sobre o que vem a ser o eu real ou atman e a Existência e sua maya.

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