➡️ εὐαγγέλιον (euanguêlion) é uma palavra grega cujos primeiro uso e tradução literal é “boa notícia”, “boa nova”, como quando pronunciada por Jesus nos evangelhos, mas, mesmo no grego, passou a ter também o sentido secundário que conhecemos hoje, que fez com que a palavra fosse transliterada como evangelho, significando a “boa nova de Jesus e conjunto de seus ensinamentos” e “cada um dos livros que os trazem”.
As fontes de ditos e o evangelho de Jesus
Muitos estudiosos acreditam que a hipótese mais plausível para as similitudes (muitas vezes literais) entre Mateus e Lucas seja a existência de um evangelho de ditos, nomeado “fonte Q” (do alemão Quelle, “fonte”) anterior a eles e que tenha servido como sua segunda fonte principal de conteúdo (a primeira é Marcos), o que explicaria por que aproximadamente 1/4 deles é refletido um no outro e não está em Marcos.
É claro que há outras hipóteses, como a desse evangelho antigo na verdade ser uma versão primitiva de Mateus, um “proto-Mateus”, que teria sido utilizada pelo evangelista de Lucas. Esse evangelho provavelmente ainda não teria o conteúdo de Marcos. O mesmo pode-se especular sobre passagens como a genealogia de Jesus (que é diferente em Lucas) ou ainda retoques presentes na forma final do Evangelho de Mateus, cujas cópias íntegras mais antigas datam do séc. III. Nessa hipótese, o “evangelho de ditos” seria um proto-Mateus.
“Q” também pode não ser também um documento único, mas composto de algumas tradições que se desenvolveram a partir, por exemplo, do Evangelho de Marcos ou do material que o comporia (um proto-Marcos). Em outras palavras, não seria um “Q”, mas alguns “Qs“. Essa, na verdade, é nossa teoria preferida, baseados principalmente na forma diversa que Lucas e Mateus trataram os evangelhos de Marcos (organizadamente e com relativa fidelidade) e as demais fontes (diversificadamente e com muita liberdade editorial), o que nos leva a crer que não havia um documento único relevante e consolidado na tradição, ao que o “muitos” em Lc 1:1 talvez seja uma pista.
Q, Qs ou um proto-Mateus podem ser hipóteses, mas o fato de existir um arcabouço de ditos atribuídos a Jesus por trás de passagens encontradas nele (como em Marcos) não é hipotético.
Independentemente de qual ou quais tenham sido suas fontes, nos evangelhos de Mateus e Lucas encontramos ditos e passagens que podem ser remetidos a Jesus, que não se encontram em Marcos, vários deles com correspondência literal, o que indica que existiam um ou mais documentos escritos que os continha. Esses são as “fontes de ditos” que, juntamente com o conteúdo de Jesus vindo da tradição oral presente em Marcos, compõem os dois primeiros evangelhos de Jesus.
Os ditos dessas fontes presentes Mateus e Lucas são a porção coincidente desses evangelhos que pode ou não remeter a Jesus pois, a exemplo e por conta de Marcos, de Paulo e do desenvolvimento cristológico, está permeada de matéria cristã.
O fato de determinado dito ou passagem atribuído a Jesus estar presente em algum – ou ambos – desses dois evangelhos-fonte não configura, necessariamente, que ele se originou em Jesus. Pode também ter nascido entre seus seguidores ou terem sido formatados por quem os registrou, de acordo com as circunstâncias existenciais da comunidade.
Não obstante, esse núcleo de Jesus em Marcos e os Ditos são as melhores e mais próximas fontes do Jesus real e onde estão a maior parte dos ditos e feitos que podem ser atribuídos a ele.
Há uma camada do Evangelho de Tomé que também pode remeter à mesma época da formação dessas fontes, já que traz ditos paralelos a elas, em diversos casos em uma forma mais simples, o que levanta a hipótese de que, além de não serem derivados delas, sejam mais próximos a aqueles originalmente proferidos por Jesus, antes de possivelmente se transmutarem para as formas consolidadas nos evangelhos sinópticos.
O evangelho de Jesus e o evangelho de Paulo
E é aí que entra Paulo. As epístolas originais de Paulo foram escritas entre os anos de c. 48 e 63.
O evangelho de Marcos é de cerca do ano 70 e os de Mateus e Lucas são posteriores a ele.

O evangelista de Marcos conhecia a teologia e o evangelho de Paulo e fez mesmo deles a “agenda” ou roteiro de seu livro, o que naturalmente foi seguido por Mateus e Lucas, que copiaram ou utilizaram a maior parte dele (do conteúdo de Marcos, 94% é utilizado por Mt e 79% por Lc – ver ilustração).
Marcos, o evangelho canônico mais antigo, é composto por:
- o “evangelho de Jesus” em Marcos (podemos chamá-lo de fonte “M”),
- a edição desse evangelho pela tradição oral e pelo evangelista,
- a teologia cristã paulina (o evangelho de Paulo), com conhecimento de suas frustradas expectativas e
- a composição narrativa do evangelista, que inclui a consulta e referências às escrituras, as quais ajudam a moldar o enredo do evangelho.
Os evangelhos de Mateus e Lucas são compostos por:
- o Evangelho de Marcos (com seu “evangelho de Jesus” editado, sua teologia cristã paulina e sua composição narrativa): Mateus e Lucas seguem Marcos – com pequenas edições, adaptações, exclusões e inserções – por longas sequências de perícopes,
- as fontes de ditos, naturalmente também com suas edições e adaptações (“tradição dupla”),
- o material coletado da tradição oral ou criado individualmente pelo evangelista (“exclusivos de Lucas e de Mateus”),
- as próprias composições narrativas dos evangelistas, que incluem a consulta e referências às escrituras, as quais ajudam a moldar seus evangelhos, que seguem o enredo geral de Marcos.
Portanto, a priori e na grande maioria dos casos, o que é de Marcos está melhor preservado neste do que em Lucas e Mateus, a não ser em algum caso eventual em que eles tiveram acesso ao mesmo relato a partir de outra fonte que o descreveu melhor.
Nessa composição, os evangelistas, a exemplo de Paulo, colocaram muitos trechos, como ditos e profecias, do Antigo Testamento dentro dos evangelhos e na boca de Jesus. Como bem demonstrou Paulo Neto, Mateus é o mais explícito nesse esforço.
O papel do evangelista de Marcos
Havia duas correntes de primeiros seguidores de Jesus: a tradição oral que transmitia os ditos e feitos de um Jesus sapiencial, profético e escatológico, e o Cristo celestial de Paulo, objeto de veneração ou culto.
O evangelista de Marcos foi o primeiro a juntar essas duas correntes: vinculou de forma coerente essas duas linhagens, antes separadas, agrupando também ditos eventualmente dispersos e multiformes em uma narrativa coerente, que uniu o Jesus histórico ao Cristo da fé. O enredo foi orientado de acordo com o evangelho de Paulo, para o relato pascoal centrado na sua morte e ressurreição, que não podem ser tomados de forma histórica, mas sim como criação do próprio evangelista.
Marcos tornou-se então o primeiro evangelista, no sentido radical, confessional, e seu material, organizado de forma biográfica, cronológica e dramática serviu de base para os Evangelhos de Lucas e Mateus, que fazem uso também de outra fonte comum entre eles. (Xabier Pikaza, sumarizando Bultmann em História da tradição sinóptica, p. 22p-23.1-2 da versão em espanhol).
A “inspiração divina” e a consciência mágica
A expressão “consciência mágica” foi usada por Paulo Freire em sua obra-prima Educação como prática da liberdade (cap. 4), para denotar a mentalidade que não é crítica nem presunçosamente ingênua, mas que designa um poder superior e dominador a determinados fatos, aos quais a pessoa se submete (o que pode levar a pessoa ao fatalismo e à inação ou “cruzamento de braços”).
Aplicada à nossa religiosidade, uma crença mágica comum é a de que Deus tinha um contato com os homens muito maior ou mais manifestado nos tempos bíblicos do que agora. Somente isso pode justificar por que Deus se manifestou a Moisés na sarça ardente no deserto (Ex 3:2-4), por que disse a partir do céu “Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo” (Mc 1:11), por que se manifestava canonicamente a profetas da antiguidade mas desde o primeiro século cristão isso, e todo o resto, foi limitado e desapareceu.
A crença mágica por trás de tudo isso é a “inspiração divina”. As escrituras seriam sagradas porque são inspiradas por um Deus. Mas não há nenhum “Deus” abrindo os céus nem fazendo coisa alguma, nem houve no passado; pois esses relatos são fictícios, míticos.
Na consciência mágica, faz-se impossível uma leitura crítica da Bíblia, a avaliação de pontos discordantes dos evangelhos e o descobrimento das pessoas dos evangelistas, que possuíam propósitos próprios (e mesmo públicos-alvos) em suas obras e tomavam liberdades de edição que geravam versículos e perícopes inteiras descolados da história real (que dirá sobre “inspiração divina”!).
Para ela, um belo dia Lucas sentou e recebeu mediunicamente de Deus seu evangelho, e não fez um trabalho jornalístico como ele mesmo descreve no preâmbulo de sua obra (Lc 1:1-4). Essa mentalidade sempre pode recuar no tempo a “inspiração divina”, colocando-a, então, nas fontes que Lucas utilizou, pois para Deus tudo é possível (Mc 10:27), uma máxima da consciência mágica esterilizante para qualquer possibilidade de reflexão.
Não deixa de ser curioso como alguns cristãos repelem a ideia da investigação crítica dos evangelhos ou textos sagrados, da busca pelo Jesus real, daquele que é (em sua leitura [Mt 16:18]), afinal, o fundador de sua religião (será que não seria Paulo?).
E que Deus seria esse que puniria o espírito buscador da verdade de suas criaturas, em favorecimento de um texto de dois mil anos de idade permeado de profecias e promessas não realizadas e para as quais não se deu há tanto tempo mais nenhuma notícia? A resposta está fora da consciência mágica.
Tu és Pedro
E também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela;
Mateus 16:18
Esta passagem trata-se de uma adição de Mateus a Mc 8:27-30, ausente em Lc 9:18-21, em sua perícope estendida 16:13-20.
Se fosse uma interpolação de um escritor moderno, seria “edição herética” e não seria sequer levada a sério, mas como foi feita por um escritor desconhecido do primeiro século é tomada por “inspiração divina” ao invés do que, fora da consciência mágica, realmente tudo leva a crer que tenha sido: invenção do evangelista.
Mas sobre esta pedra se construiu todo o Cristianismo como religião e toda a tradição sacerdotal, papal.
Isso exemplifica o poder das edições arbitrárias dos evangelistas, muitas vezes motivadas pela intenção de responder às questões contemporâneas da formação de sua religião, que se estenderam pela história.
Descobrir a boa nova ou evangelho de Jesus é separar os ditos que podem ser remetidos a ele – presentes na tradição oral ou escrita registrada em Marcos e Lucas e Mateus – do evangelho paulino e da composição literária desses evangelistas que o recobrem nesses evangelhos canônicos.
E é exatamente esse trabalho que estamos empreendendo agora.
Duas das melhores ferramentas para quem deseja empreender essa tarefa são a Bíblia do Peregrino (em especial os comentários do Novo Testamento) e Os cinco Evangelhos, de Funk, Hoover e o Seminário de Jesus. Cada obra da literatura citada, bem como os vídeos, do caminho de Jesus também traz a sua colaboração.
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Noções do Grego Bíblico: Gramática Fundamental
(Lourenço Stelio Rega e Johannes Bergmann)
Este livro é uma gramática e método de aprendizado completo do grego koiné ou bíblico, feito para o estudo autodidata do idioma.
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