Suma Teológica (Tomás de Aquino) [ou Tratado sobre o pecado] – Segunda parte

Veja na primeira parte o início deste texto. | Veja na terceira parte: Conclusão e livro (pdf)

Carnal x Espiritual

A confusão que a igreja institucionalizada faz e apregoa a seus fieis é entre o espiritual e o físico. Seguindo o pensamento de Paulo, para Tomás quanto mais afastada da carne, mais espiritual é a vida que vivemos (p. 4222.4B). A virgindade está entre os maiores méritos (p. 4222p). Eles forçam o ser humano, pela mente, a contrapor-se a Deus em sua prática sexual (p. 2633.5f), a contrapor dentro de si as dimensões física e a espiritual – e o que o está as tornando conflituosas é justamente essa doutrina!

Só que essa mensagem é transmitida para pessoas que estão neste mundo, en-carnadas. Estamos envolvidos e mesmo identificados com nossos corpos.

Essa separação dogmática entre o espiritual e carnal faz-nos dividirmos, separarmos, quando na verdade tudo é uma unidade. O físico é uma manifestação do espiritual, não são duas coisas distintas. O nosso ser está envolvido pela mente e pelo físico. É por meio deles que ele se manifesta, que nós nos manifestamos.

Quando foi que realmente olhamos nosso corpo com carinho, com amor, com aceitação? Não, ao invés de gratidão por esse corpo perfeito ter sido nos concedido, sentimos asco, nojo, nos perguntamos por que Deus colocou o pecado nele, como se você tivesse que carregar um fardo de pecados.

Para refletir. Quem de nós consegue amar outra pessoa sem, antes, amar o corpo dela? E como amar o corpo de outra pessoa se condenamos o nosso próprio? Logo condenaremos também ao corpo dela e, junto, a ela também.

Quando “quebramos” centros desse elo de expressão do nosso ser espiritual, como o do sexo e o do coração, o resultado é apenas que nossa manifestação física se torna menos plena, mais desiquilibrada. Nos tornamos somente cabeça, e uma cabeça fragmentada.

Essa teologia poderia fazer sentido se nós fôssemos a nossa cabeça, se o nosso ser fosse a nossa mente. Mas a verdade é que somos algo muito mais profundo, muito maior do que a mente, ainda mais pelo fato de que o que consideramos “mente” aqui é uma parte de seu mecanismo, associada à memória, que é mais uma parte da sociedade (e toda sua cultura, religião, etc.) dentro de você – o que Freud chamou superego. Nesse sentido, somos muito mais o coração e mesmo o corpo do que essa mente emprestada. Todos esses são manifestações de nosso ser, todos são sagrados.

E qual é o resultado? Pessoas mais obcecadas pelo sexo do que as “não-religiosas”. Se a pessoa está continuamente reprimindo seu sexo, ou seu sentimento, está sempre pensando nele.

Como, hoje, não podemos nos separar dos nossos corpos, essa divisão faz com que o ser humano não se aceite a si mesmo, como é.

A meditação pode te levar a perceber este seu ser real. Quando você percebê-lo, verá que existe sim uma uma certa ou aparente dualidade entre o espiritual e o manifestado, entre o ser (que observa) e o observado, o que é percebido. Mas essa dualidade, em última análise, é apenas aparente. Tudo é uma manifestação de uma coisa só: o observador é o observado, o observado é o observador.

E reprimir o sexo não vai te ajudar em nada a atingir essa percepção espírito-matéria. Muito pelo contrário. O instrumento que é usado para essa repressão, a mente, é exatamente o que faz a ilusão dessa divisão, que fortalece o ego. Você não pode chegar à não-dualidade se estiver contra algo – não-dualidade é uma integração, é um todo. Você não chegará a Deus se estiver na mente.

A repressão sexual não é exclusiva do Cristianismo. Linhagens hindus, do Yoga, do Vedanta, do Budismo e muitas outras também a fazem.

E tipos como Tomás de Aquino pedem que você reprima até o amor! Tudo pela mente, pela “religião”.

Novamente, o amor é uma janela na qual podemos anular nosso sentido de divisão, nos anular pelo outro, anular nosso ego. É uma janela para essa não-dualidade, para o puro ser, para Deus.

Ao olhar para uma mulher ou para um homem, há só a repressão. De fato, nem se olha direito. O amor se torna algo insólito. Após o orgasmo, ao invés da beatitude amorosa, a culpa.

É a força do “autoconhecimento”, de conhecimento existencial espiritual, que faz que possamos lhe garantir que este livro é um compêndio de enganos.

Proíba-se o prazer!

Então a coisa atinge um pico no trecho da p. 3840.8s, onde Tomás relata que Paulo pretendeu proibir o prazer. Mesmo o prazer entre o marido e mulher deve ser coibido (p. 3884.3).

Para ele, só a mente pode se unir a Deus, quando a realidade é justo o contrário, a dissolução da mente pode nos fazer experienciar Deus.

E o irônico é que a experiência de Deus ocorre justo ao contrário do que ele está apregoando. Quando deixamos a razão de lado, aquietamos a mente, evaporamos o ego, percebemos o que está além de tudo isso, além de nós mesmos.

Quem está lendo isso e conhece o pensamento de Osho, pode achar que estamos somente o reproduzindo. Isso, às vezes, é inevitável. Em matéria da psicologia em torno do sexo e a atitude repressiva das religiões com relação a este, ninguém foi mais preciso do que ele. O mesmo pode-se dizer da carga da mente atrapalhar a experimentação de nosso verdadeiro ser ou de Deus. Mas não falamos a partir de Osho, falamos a partir de nossa própria percepção e experiência: não é necessário atingir o nível de um Osho para perceber isso. Com um pouco de aquietamento, meditação, leitura e autoconhecimento as coisas vão ficando claras por si sós.

N’um trecho um tanto obscuro, Tomás relaciona o prazer com a pena divina: “Porque a dor da pena corresponde ao prazer da culpa. Portanto, não sendo a culpa original acompanhada de nenhum prazer, dela ficará excluída toda dor penal.” (p. 4268.1f, seguindo 4266p). Se nosso intelecto chegou no que Tomás quis dizer aqui, quanto maior o prazer, maior a pena – aqui o Deus que ele criou seria simplesmente um sádico, em um nível sem paralelos.

Beijos e abraços pecados mortais!

A coisa fica mais absurda cada vez que avançamos. Fica difícil sair da questão do sexo quando há muitos tópicos que não podem passar batidos. E afinal o livro é sobre isso, sobre o pecado, sobre o sexo.

De dois modos pode um ato ser pecado mortal. – Pela sua espécie; e então, os beijos, os abraços ou contatos não implicam, por natureza, pecado mortal. Pois, podem ser praticados sem lascívia, ou por costume pátrio ou por qualquer necessidade ou causa racional. – De outro modo, um pecado pode ser mortal na sua causa; assim, quem faz esmola, para induzir a outrem em heresia, peca mortalmente, por causa da intenção perversa. Pois, como dissemos consentir no prazer de um pecado mortal é pecado mortal, e não só o consentimento no ato. Por onde, sendo a fornicação pecado mortal, e muito mais as outras espécies de luxúria, resulta, por consequência, que o consentimento no prazer desse pecado é pecado mortal, e não só o consentimento no ato. Logo, como os beijos, os abraços e coisas semelhantes se pratiquem por causa do prazer que encerram, são por consequência pecados mortais. E só neste sentido se consideram lascivos. Portanto, tais atos, enquanto libidinosos, constituem pecados mortais.

Tomás de Aquino, em Suma Teológica, p. 2640u

Pois agora você está sabendo que beijos e abraços, se executados por ou com prazer, são pecados. Não só pecados, como pecados mortais! Essa gente quer destruir o prazer, a alegria, o sexo. Se o prazer e o sexo forem destruídos dessa forma, saiba que seu amor também será destruído. Destruído não, porque assim como o sexo ele é indestrutível, mas sua capacidade de dar carinho, amor, empatia, serão muito, muito reduzidas se você reprimir o sexo.

Em nossas relações interpessoais, que espécie de amor sem prazer e sem alegria poderíamos oferecer? Seria um amor pobre, falso, um pseudoamor.

A loucura pode chegar a um ponto em que a pessoa começa a ter receio de fazer um carinho no próprio filho, com medo de que o toque se torne sexual. Perceba, a pessoa se torna obcecada pelo sexo. Os mais insanos, não satisfeitos em podar o próprio sexo, querem fazer o mesmo com os outros também. Então escrevem livros como este. Ou nos dias de hoje se tornam influenciadores digitais representantes das virtudes cristãs.

A mente dominará não só o sexo, como o coração. E, identificado com a mente, você perde a Existência, perde tanto o mundo, a sua vida sensorial e de prazer, como o mais espiritual.

O sexo nos ensina, através do prazer e afeição sensórios, sensuais, a afetividade, a como amar de maneira pessoal.

Há jovens que estão recebendo indicação deste livro, e ele tem o potencial de acabar com sua vida prazerosa. A “sorte” é que é um livro imenso, tem muita gente que o elogia ou defende sem o ter lido suficientemente, então pode ser que ele caia também em mãos e mentes que não cheguem a se destruir com seus desdobramentos.

A luta contra si

(…) diz Agostinho, que, de todas as lutas em que os Cristãos vivem empenhados, as mais duras são as da castidade, onde a pugna é quotidiana e rara a vitória. E Isidoro diz, que pela luxúria da carne, mais do que por qualquer outro pecado, o gênero humano se faz presa do diabo, isto é, porque é difícil vencer a veemência dessa paixão.

Tomás de Aquino, em Suma Teológica, p. 2639a

Este mundo é um plano em que nascemos livres, com liberdade psicológica, e algumas pessoas vêm nos prender. E aqui os próprios carcereiros admitem que é uma luta vã. Aqui entra outro personagem importante da história: o Diabo. Esse é um ápice da divisão do ser humano. Até aqui estávamos, fragmentados, mas unos: tínhamos o nosso lado virtuoso e o pecaminoso. Agora a natureza sexual está a cargo do Diabo – é o elo pelo qual ele nos prende.

Se você entendeu o que estamos falando, sabe quem são os verdadeiros carcereiros.

Sentimos que existe algo mal, diabólico, dentro de nós. Isso entrou profundamente em nosso inconsciente. Como nos condenamos, condenamos também os demais. Por isso que se conseguimos nos libertar desses condicionamentos, dessa prisão, emerge uma autoaceitação, um autoamor, que desbloqueiam nosso potencial para amar verdadeiramente outros seres. Você não é má, você não é mal, você não é nem nunca foi pecadora ou pecador. Você é divina, Você é divino.

E o corpo, o sexo, tudo é divino. Em última instância, toda a existência não tem outra alternativa a não ser ser divina.

Maquiagens e ornamentos femininos também são pecados

Porque incitam os homens a pecar, os pobres homens (que são mais nobres que as mulheres [p. 3124(1);u]). Sempre na contenção do sexo. Todas as mulheres de nossos dias se enquadrariam nesta categoria. E cuidado que pode ser até pecado mortal! Está na p. 2730u (ornatos) e 2731.2 (maquiagem). O primeiro parágrafo da p. 2731 também reforça aquele anacronismo eterno de se ficar preso às palavras de Paulo como vontade de Deus.

E não há nem como argumentar que alguns itens como esses podem ser considerados motivados por costumes da época, pois as mulheres de então, como as de hoje, se ornavam e maquiavam. E, mesmo que houvesse alguma diferença, o argumento ainda seria infundado. Pois o que importa são os motivos do discurso: tudo gira em torno do sexo natural ser quase sempre pecado.

Do sexo ao pecado original

Pecado original (latim : peccatum originale) na teologia cristã se refere à condição de pecaminosidade que todos os humanos compartilham, que é herdada de Adão e Eva devido à Queda, envolvendo a perda da retidão original e a distorção da Imagem de Deus . A base bíblica para a crença é geralmente encontrada em Gênesis 3 (a história da expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden), e em textos como Salmo 51.5 (“Eu nasci em iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe”) e Romanos 5.12–21 (“Portanto, assim como o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram”).

Wikipedia(EN) » Pecado original

Para que o ser humano possa ser resgatado de seus pecados por Cristo, é necessário que ele seja pecador. E para Paulo, para a Igreja, para Tomás de Aquino, todos nós herdamos, já desde o nascimento, esse pecado original, pois nascemos mesmo do pecado, porque o fundo do Sl 51.5 é este: o sexo é pecado.

Não fosse pelo pecado original, muitas pessoas que seguissem as regras da igreja não poderiam se considerar pecadoras. Sem falar nos inocentes, das crianças que não conhecem o sexo. Então…

Perdeu, mané!

Nasceu, você é pecador e precisa de resgate – a criatividade dessa gente foi tão grande que infundiram o pecado na nossa própria natureza que, é claro, precisa ser corrigida. Mas Deus (na verdade, Tomás e todos que entram nessa ficção) pode nos perdoar, contanto que nos dividemos, fragmentemos a nossa natureza, rejeitando o, assim chamado, pecaminoso (p. 3608.2).

O primeiro resgate é ser batizado pela Igreja, o que te “purifica do pecado original” (p. 1807(5)), mas te vincula à Igreja ou, dizendo melhor, te prende ou escraviza a seus dogmas. E é melhor você não escapar.

Além da “obrigação do batismo”, o primeiro parágrafo da Solução da p. 3413 repete a máxima cristã que “ninguém pode alcançar a salvação senão por Cristo” e que pela desobediência de Adão, todos foram feitos pecadores (repetindo Rm 5.19). O batismo seria necessário para incorporação em Cristo (cita Gl 3.27).

Esse Deus que o homem inventou tem uma regras estranhas, se você parar para pensar, bem estranhas.

Convite à loucura

Se você deseja tornar-se completamente louco, siga Tomás de Aquino. Na objeção e solução à ela da p. 3614 ([1]/us), ele admite que não se pode viver neste mundo sem cometer pecados veniais (leves, perdoáveis), mas que temos que lutar constantemente contra eles. O que são esses pecados leves? Matar, roubar? Não! Nem nada que uma pessoa de natureza boa não precise lutar contra. Estamos falando principalmente de sexo. É passar a vida lutando contra si, contra o corpo, pecando, se culpabilizando, confessando ou se reconectando com Deus, então voltando a pecar

Se você for bi ou homossexual ou afetivo, piorou. Além da sua natureza ser pecaminosa, a orientação dela também é! Dentro de nosso contexto, não só cristão, não só religioso, como social, é conhecido que pessoas LGBTQIA+ são mais propensas ao comportamento suicida.

É improvável que você entre em uma igreja católica e não seja chamado de pecador. Nós pecadores, “rogai por nós os pecadores…”, não somos dignos, etc. Isso destrói a autoestima de qualquer um! Na verdade, só aparentemente não destrói porque combina com nossa máscara de humildade, de correção, de santidade – mas então cria uma ilusão, a ilusão de um ego humilde que junto com sua autoestima teve aniquilada a possibilidade de expressão plena de sua potencialidade divina.

Você não é pecador!

Se não fosse por esse chamado pecado, você não estaria aqui.

O sexo é, melhor explicado, o meio por qual a Existência ou Deus se desdobra, se transforma neste mundo.

Se você ainda não está convencido de que “teologias” como a presente nesta obra podem destruir sua autoestima, vamos a uma passagem arrebatadora.

Não se ame

O amor de si, no atinente a quaisquer bens que desejemos, é o princípio comum dos pecados. Mas, o amor é considerado como filho da luxúria, especialmente, quando é o pelo qual desejamos os prazeres da carne.

Tomás de Aquino, em Suma Teológica, p. 2633u

Amar a si mesmo é pecado, haja paciência com essa teologia! Essa ideologia é reforçada na p. 1465.3-4. Depois disso não seria preciso falar mais nada.

Os moralistas de todas as religiões contaminaram o mundo inteiro com essa mentira, dizendo: “não ame a si mesmo, isso é egoísmo”, “ame aos outros, amar a si mesmo é pecado” – quando o que te dá crescimento seria “ame a si mesmo”, se você não for capaz de se amar, que qualidade de amor poderá ofertar aos outros? Será um amor contraído, limitado, não terá a qualidade transbordante de um amor pleno.

Na intenção de assegurar a Cristo o papel de “filho unigênito de Deus”, Tomás nos chama de “filhos adotivos de Deus” (p. 3132uB). Você podia ter dormido sem essa né?

Brincadeiras à parte, nem mesmo a palavra “filho” é a mais apropriada para descrever a nossa natureza, a nossa unidade divina, a nossa divinidade.

Uma das formas de te desencorajar a amar a si mesmo é lhe imputando um pecado intrínseco. E é mentira que você seja um pecador. Você é divino, um imperador comendo bolotas de porcos, que os sacerdotes te enfiam goela abaixo.

Amor próprio. Esta é a janela que possivelmente te fará escapar de Tomás e, quem sabe, de toda essa teologia.

O motivo pelo qual damos ouvidos a ideias como estas é exatamente que, de alguma forma, não nos amamos suficientemente. No fim, é tudo uma questão de estar mais consciente.

Quando alguém se converte em pura cabeça e perde toda sensibilidade, toda consciência, todo viver; quando alguém se converte em pura teoria, em dogmas e em escrituras e palavras e palavras que giram em torno da mente. Um dia, se a pessoa é consciente, há de abandonar tudo isso.

Osho, em A arte de morrer, p. 119p (PDF em espanhol)

A personalidade de Deus

Tomás de Aquino parece ter tido acesso às predisposições de Deus: ele sabe o que ofende a Deus(!) e o que Ele não pode perdoar(!!). (p. 3607us e 4271.3)

Um resgate daquele Deus pessoal, vaidoso, ciumento do Antigo Testamento.

Aspectos da tal “lei de Deus” (p. 3644us) que o homem inventou são contrários à nossa própria natureza.

O que injuria a Deus é, principalmente, como você já deve suspeitar, o sexo, o prazer, pois Tomás não pode admitir que o sexo seja divino. (p. 2630u)

Que Deus louco esse de Tomás, que criou nas criaturas um poder sexual tal que seja contra si mesmo. Que pelo sexo criou boa parte da Existência.

O curioso é que simples criaturas como Sidarta Gautama, entre outras, possuem desapego suficiente para não se sentir ofendidas, mas o próprio Criador não o tenha atingido. Se humanos não podem ser mais evoluídos do que Deus, só resta uma explicação para isso: as pessoas que criaram esse criador não tinham a envergadura ou experiência espiritual daquelas, de um buda, de um Jesus – façamos Deus à nossa imagem e semelhança.

E é exatamente por isso que este que vos fala lhe garante que toda essa teologia que inventou esse Deus é uma ilusão – algo que se em um dia de nossa história pessoal ou mundial foi útil, está maduro para ser superado, para ser reinterpretado. Esse processo é individual, é sempre individual – mas pode dar surgimento a um ser humano completo, realmente religioso.

Bases para a “Santa” Inquisição

Outro é o caso porém, dos infiéis, que outrora tiveram fé e ainda a confessam, como os heréticos e todos os apóstatas. E esses devem ser forçados, mesmo com violência física, a cumprir o que prometeram e a conservar o que uma vez receberam.

(…) Os judeus, que de nenhum modo receberam a fé, não devem ser forçados a aceitá-la. Os que, porém a receberam devem ser obrigados à força a conservar a fé, como se diz no mesmo capítulo.

Assim como prometer é próprio da vontade e cumprir o exige a necessidade, assim também, próprio da vontade é receber a fé, e, de outro lado, é imposição da necessidade conservar a fé já recebida. Por onde, os heréticos devem ser compelidos a conservar a fé. Pois, diz Agostinho: Porque costumavam este: a clamar – somos livres: de crer ou não? Contra quem Cristo empregou a força? – Saibam, pois, que Cristo forçou, primeiro, Paulo, e depois o ensinou.

Tomás de Aquino, Suma Teológica p. 1802uf; 1803.2-3

Tudo, é claro, pelo próprio bem deles. Pois a bíblia e a Igreja possuem a absoluta verdade de Deus. Essa interpretação de que Cristo forçou Paulo para depois ensiná-lo é de jogar todo o caminho de Jesus pelo ralo! Mas Aquino, como Paulo, pouco fala dos ensinamentos existenciais, espirituais de Jesus, e é bom que eles não tenham falado, assim não tiverem a oportunidade de canonizar sua deturpação.

Ritos intoleráveis

Outro problema do texto é o próprio poder da Igreja. Como assim os ritos de outros povos (p. 1806us) não são toleráveis? Ou que toda a vida dos infiéis é pecado (p. 3946uB)?

Compare com o que alguns políticos apregoam hoje: “como cristãos, não podemos admitir o casamento homoafetivo”. Como assim, não podem admitir? Você não pode admitir que seu vizinho pinte a casa de rosa? Isso não está no seu âmbito, não tem nada a ver com você!

E nesses tempos de inconsciência, muitas pessoas dizem Amém; Glória a Deus! para discursos inflamados e intolerantes como este.

Pra não dizer que não falei das flores

É claro que em sua obra Tomás de Aquino faz exposições interessantes. Vamos citar algumas:

  • A existência é a essência de Deus (ex. p. 137.1)
    • Deus é o ser de tudo que subsiste (ex. p. 142pf-143.1).
    • Deus está em todas as coisas. (ex. p. 156.1)
  • Unidade em Deus (ex. p. 181.2).
  • A essência ou o ser em si está relacionada à eternidade. A mudança está relacionada ao tempo, que leva ao “corruptível” (ex. p. 174.4 [Resposta à Terceira]).
  • Deus é inominável (ex. p. 199)
    • “Aquele que é” (ex. p. 215.4)
  • Em Deus não há forma nem matéria (ex. p. 405.6).

A partir das considerações metafísicas acima até um Deus reduzido à mente, com planos caprichosos de salvação, povos escolhidos, filho único, etc., é um pulo demasiadamente largo. O erro da teologia de Tomás é considerar Deus objeto de ciência (122(S)).

Esses conceitos coincidem com aquilo que aqueles que conhecem concluem a respeito de si mesmos, da Existência ou de Deus. Eles são descritos também, por ex., no Vedanta, no Tantra e, talvez de maneira ainda mais sutil, no Tao. Em sânscrito, sat significa ser ou existência e denota um dos aspectos da realidade fundamental e de nossa própria essência. Em última análise, conceitos como a unidade em Deus nos levam à não-dualidade.

Na Suma Teológica, há desenvolvimentos metafísicos profundos, como o apresentado pela força motriz primeva (p. 130.1) da Existência, “ao qual todos dão o nome de Deus”. O grande erro de Tomás é articular essa elegante explicação metafísica com sua teologia cristã: como aquele impulso original se tornou o Deus antropomorfizado mesquinho, ofendível e imisericordioso que ele “descobriu” nas escrituras.

Novamente, essas são características do ego, e mesmo um ser humano razoavelmente des-envolvido reconhece sua essência além dos caprichos deste.

Se dá para aprender algo com esses desenvolvimentos, não se deixe seduzir por eles, “comprando” a obra como um todo, pois a seguir, conforme demonstramos, Tomás transforma, reduz e antropomorfiza, como faz a Bíblia, essa inefável, inabarcável, infinita força espiritual, através de uma teologia (inevitavelmente) limitante, que poderá aprisionar quem dela se convencer, da mesma forma que fazem, geralmente inconscientemente, as igrejas e líderes religiosos (ao menos em sua maioria).

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