A água, a vida o Estado e a privatização da Sabesp

Água é vida

Os astrônomos que procuram por vida em outros planetas buscam essencialmente por água, pois se sabe que sem ela não há condições para a vida orgânica como a conhecemos.

Especialmente nós, seres humanos, necessitamos dela não só para a sustentar a vida do corpo, como também para cultivo e preparo de alimentos, higiene pessoal e ambiental e esgotamento sanitário.

Água é vida. A falta dela é o prelúdio da morte.

De quem é a água?

De quem são os raios solares que chegam à Terra? De quem é o ar que respiramos? De quem é este mundo? De todos nós – são bens públicos por essência.

A água é um bem universal, comum, um direito humano essencial. Sua propriedade não está à venda. Não pode estar à venda em hipótese alguma.

A água e sua distribuição não podem estar no poder de grupos de indivíduos ou empresas nos tempos atuais, muito menos em um futuro aonde pode nos esperar a escassez em âmbito global desse nosso mais valioso bem.

Tratamento e distribuição da água

A Sabesp, Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, é a empresa responsável pelo tratamento e fornecimento de água, além da coleta e tratamento de esgotos de 375 municípios do Estado de São Paulo, atendendo mais de 28 milhões de pessoas.

Sociedade anônima de capital aberto e economia mista (público-privada), a Sabesp tem o Governo do Estado de São Paulo como principal acionista, controlando a gestão da companhia com seus 50,26% de participação.

Privatização do processo

No dia 06/12/2023, deputados do estado de São Paulo aprovaram projeto de privatização da Sabesp proposto pelo governador Tarcísio de Freitas, que não poupou recursos políticos para obter o apoio necessário para a aprovação. Agora o jogo político segue também para as esferas municipais, pois cada um dos 375 municípios atendidos pela Sabesp deve optar pela adesão à privatização.

Em que mundo esses senhores estão vivendo para não apenas considerar a privatização de um bem público, universal, como aprová-la?

Segundo a InfoMoney, a ideia é que o estado mantenha 15 a 30% de participação.

Se o que está em jogo não é a posse da água, mas o sistema de distribuição e cobrança que permitem o acesso a ela, não é menos grave expor um bem público ao apetite de lucros do mercado.

Bens e direitos universais como o acesso à água tratada não podem ser questão de poder econômico ou de mercado, não podem estar expostos a seus humores e leis, ao interesse pelo lucro.

O que é mais problemático, como lembra Gustavo Gaiofato, é que o investimento no saneamento básico, no tratamento de esgoto, é uma questão de infraestrutura que não gera lucro direto, o que se tentarmos encaixar na “lógica do lucro” do mercado, só pode resultar no aumento das tarifas e contas dos consumidores, aumento este que pode recair justamente sobre a população das áreas que mais precisam de investimento.

Um exemplo da dissonância entre qualidade do serviço e lucro já aconteceu no processo de pré-privatização: a Sabesp apresentou um balanço com lucro R$ 3,12 bilhões em 2022. Desde que a infraestrutura de saneamentos básico do estado ainda carece de investimentos, a conclusão que se tem é que o “custo” ou o fator gerador desse lucro seja exatamente a contenção de despesas, ou seja, a diminuição ou falta de investimento em profissionais (folha de pagamento, prestadores de serviços) e no saneamento básico (manutenção e ampliação da rede). Esse lucro é, assim, uma “maquiagem” para torná-la atrativa para o mercado.

Esta privatização é sinônimo de incompetência

A Sabesp é uma empresa sustentável, com capacidade de investimento próprio e de crédito.

Para defender sua privatização, Tarcísio e Percy Soares Neto, diretor executivo da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), argumentam que a capacidade de investimento da Sabesp “privatizada” solucionaria problemas como a deficiência de abastecimento em determinadas localidades (cabe lembrar que São Paulo é um dos estados com melhores indicadores de abastecimento do Brasil – está longe de ser terra arrasada e a Sabesp possui know-how e capacidade financeira e técnica para universalizar os serviços de água, bastando incentivo político e vontade administrativa).

O modelo proposto pelo governo paulista de Tarcísio prevê investimentos de R$ 66 bilhões até 2029, o que representa R$ 10 bilhões a mais em relação ao atual plano de investimentos da Sabesp, e uma antecipação da universalização do saneamento, de 2033 para 2029.

Por g1 SP em 12/12/2023

A verdade é que analisando o texto que foi aprovado pela Assembleia Legislativa de SP, Eduardo Moreira demonstrou que os deputados o aprovaram sem que houvesse nenhuma cláusula que exigisse esses R$ 66 bilhões de investimento. Então eles aprovaram algo que não específica sequer a parte “vantajosa” (será que é tão vantajosa assim?) da proposta, aquela que defenderia o interesse público. No fim, é “vender a casa para pagar o aluguel”.

Eu não conhecia o trabalho do Eduardo Moreira até então, mas esse vídeo realmente vale a pena ser assistido, pois ele também argumenta a problemática de como a grande mídia se guia por interesses econômicos e como esses interesses tendem a tornar o processo de privatização um mau negócio para a população.

Se esses políticos não sabem administrar um dos mais preciosos bens públicos, para que servem? Para vender o Brasil? O que, afinal, estão fazendo aí?

O que é o Estado senão nós mesmos e a administração do bem público?

A privatização em outros lugares

Com o gancho da constatação do Eduardo, não podemos confiar em meras promessas de políticos e investidores. Por ex., Paulo Sérgio Farias, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Saneamento e Meio Ambiente do Rio de Janeiro e Região (Sintsama-RJ), afirma que a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), privatizada em abril de 2021, não está cumprindo com a promessa de universalização e que os profissionais da empresa sofreram desvalorização profissional e queda nos salários com o desmembramento da companhia, que gerou a troca do empregador – o piso salarial teria caído 150% e ido para um salário mínimo. Sim, tem muita gente trabalhando 8, 9 horas por dia por um salário mínimo. O que se faz com um salário mínimo? Milagre!

No Rio, também foram relatados diversos casos de aumento abusivo de tarifas pelas concessionárias. (também em Brasil de Fato e Veja Rio)

Reestatização

A privatização da Sabesp e de outras companhias de serviços básicos brasileiras vai no sentido oposto do que está acontecendo em outros lugares, a reestatização dessas empresas: diversas cidades ao redor do mundo retomaram o controle público de companhias de saneamento, geralmente não antes de árduas, demoradas e dispendiosas batalhas judiciais e enormes prejuízos aos cofres públicos por multas impostas por quebras de contrato.

E quem pagaria o prejuízo se for este o caso? O Tarcísio, deputados, prefeitos e vereadores que estão aprovando o projeto?

“A experiência mostra repetidamente como a privatização gera aumentos de tarifas e torna a água menos acessível à maioria da população”, afirma a pesquisadora e geógrafa política Lavinia Steinfort à BBC News Brasil.

Reportagem de Júlia Dias Carneiro para a BBC News Brasil em 06/12/2023

Vender nossas melhores empresas pros gringos

No fim de 2023, a Sabesp e o governo de São Paulo escolheram os bancos responsáveis pela operação de privatização em Bolsa. Bank of America, Citi, UBS-BB e BTG serão os responsáveis pelo follow-on. A opção de dois players locais e dois estrangeiros para a transação visa fazer frente à procura de grandes fundos internacionais por uma fatia da companhia.

Rikardy Tooge e Lucinda Pinto para a InfoMoney em 10/01/2024

“A Sabesp é a grande privatização do Brasil hoje”, afirmou o governador nesta em 10/04/2023, no Palácio dos Bandeirantes. “Você vai lá para fora e só se quer saber disso. Todo o mundo interessado (na Sabesp)”

Iuri Pittada para a CNN, 10/04/2023

Se por si só a privatização de um serviço essencial para a vida já é perigosa, imagina vendê-la para estrangeiros (ainda que o Tarcísio de Freitas pareça ansioso para agradá-los)!

Estado máximo ou Estado mínimo

A linha de pensamento político que leva a privatizações é a da Estado mínimo, ou seja, diminuir ou “enxugar” o Estado. Mas não é hora para isso!

No dia 18/01/2024, o bilionário Elon Musk, dono do X (Twitter), postou um tweet (ou seria um x?) “So hot rn” demonstrando excitação com a figura de Javier Milei aparentemente fazendo um pronunciamento; fui pesquisar e de fato o presidente argentino havia discursado no Fórum Econômico Mundial, em Davos-SUI, a respeito das vantagens econômicas do Capitalismo e das consequências da interferência governamental no livre-mercado, que só poderia levar à pobreza. Ele foi aplaudido pelos engravatados na Suíça e nos comentários do vídeo.

Corta pra realidade

Uma grande rede de supermercados implementou em diversas lojas caixas de autoatendimento. Geralmente, há aproximadamente um caixa desses para outro com atendente humano.

A experiência de autoatendimento é bem mais demorada do que a convencional, pois nós mesmos temos passar cada produto pelo leitor de código de barras e colocar ele numa esteira que, pela detecção na alteração do peso sobre ela, detecta que mais uma unidade foi comprada. Às vezes o código de barras ou a esteira falha e você tem que refazer o processo ou chamar um funcionário que fica próximo a esses caixas. Por isso e pelos motivos citados abaixo, eu me recuso a passar nesses caixas.

Vamos supor que cada loja economize o equivalente ao serviço de um funcionário. Ao todo 200 profissionais não foram mais necessários para o atendimento e, digamos, 100 deles puderam ser realocados para outros processos da empresa. Mas a máquina tomou alguns empregos e sustentos. Numa loja foi o do João, em outra o da Maria.

Tudo bem, eles voltam para o mercado de trabalho e têm opções para se recolocar: mas o processo de informatização, agora impulsionado pela “inteligência” artificial (IA), está – e cada vez estará mais – tomando enormes dimensões e inúmeros postos de trabalho.

Como já alertava Yuval Noah Harari, em 2018, mais dia menos dia a maioria [ou ao menos uma parte considerável] dos trabalhos e processos que hoje são executados por humanos poderão ser executados por robôs e IAs, o que tem o potencial de trazer enormes benefícios para as pessoas reais, mas traz um perigo consigo: o que vão fazer e como vão se sustentar aqueles que não tiverem mais empregos ou até empregabilidade?

Assuntos como o bem-público, a regulação do poder público (que somos nós) na economia e a renda básica universal têm de estar na pauta.

Sidarta Ribeiro, neurocientista e autor do livro Sonho manifesto (entre outros), diagnosticou precisamente isso: estamos num momento-chave para a humanidade, pois temos os recursos naturais, tecnológicos e humanos para criar um paraíso na Terra – não temos mais a escassez de recursos que fez da nossa raça tão competidora e belicosa – ou para criar um inferno (ele já está criado para muitas pessoas).

Espiritualmente falando, podemos retroceder à nossa natureza instintiva competidora, cruel e egoica, ou despertar o que há de divino em nós.

E mesmo que a coletividade não o(a) acompanhe, você pode individualmente se autorrealizar nesta vida (se o sistema não te engolir antes).

Você tá pensando pequeno!

A defensores do modelo de políticas públicas como essas privatizações, o corte de investimentos em Ciência que ocorreu no Governo Bolsonaro ou seu negacionismo quanto ao aquecimento global ao ignorar ou invalidar os dados a respeito do desmatamento da Amazônia fornecido pelo IPAM, Sidarta Ribeiro costuma dizer: “Você tá pensando pequeno!”

Nada mais real. O fazendeiro bolsonarista ignora que a ciência afirma que o desmatamento da Amazônia implica na diminuição da umidade da floresta e isso impacta na quantidade de chuvas que caem em todo o país e continente, tendo mesmo efeito globais. A seca, que devastará sua safra, além do problema do abastecimento de água em si, pode trazer escassez de alimentos, violência, guerra.

Enquanto defende uma política na qual ele se sente mais seguro, ignora que esse modelo é insustentável, que ignorar os fatos só vai antecipar a seca em sua região.

O Uber de direita ignora que se puder a Uber ou qualquer outra empresa no sistema de livre-mercado colocará carros autônomos para rodar e fazer corridas a preços mais baratos e que ele se somará aos desempregados do supermercado.

O dentista que votou 22 não imagina que ele ou sua filha que herdou a profissão poderão ser substituídos por robôs em um futuro próximo – o trabalho que dez ou vinte dentistas fazem hoje poderá ser substituído pelo de um, que dará comandos aos robôs.

O livre-mercado, o estado mínimo, defendido por Milei, Bolsonaro e Tarcísio não vai garantir o futuro (nem o presente) dessas pessoas. A desigualdade social continuaria aumentando – e isso não são somente números, há sofrimento existencial real, fome, exaustão, desesperança e morte em cada ser humano que foi descartado pelo sistema.

Aliás, quando eu vi este outro vídeo do Milei durante sua campanha no ano passado, pensei: “A Argentina deve estar muito f0d!d4 pra considerar este tipo!”

Sim, a crise lá está grave e os governos anteriores têm culpa nisto, o que gerou a condição necessária para o surgimento de um político assim. Mas por muito menos aqui no Brasil os Bolsonaro e seus marqueteiros conseguiram incutir na mente das pessoas o medo do Comunismo, da perseguição aos cristãos e a tipificação de Lula como um bandido praticamente foragido. Se na Argentina havia o cenário catastrófico ou o caos no qual tamanho extremo fizesse algum sentido, definitivamente não era nem é o que acontece no Brasil.

Precisamos recuperar a capacidade de criticar o Governo Lula sem nos preocupar em entregar o país a um Bolsonaro ou Tarcísio da vida – escapamos por um triz de um golpe de Estado e depois de um golpe pela via eleitoral, mas a ameaça segue bastante viva.

Agora traduzindo o, abissal, vídeo:

Ministério do Turismo e Desportos… fora!
Ministério da Cultura… fora!
Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável… fora!
Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade… fora!
Ministério das Obras Públicas… fora!
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação… fora!
Ministério do Trabalho, Emprego e Seguridade Social… fora!
Ministério da Educação, (doutrinação)…fora!
Ministério dos Transportes… fora!
Ministério da Saúde… fora!
Ministério do Desenvolvimento Socialfora!

Se acabou o negócio da política
Viva a liberdade, c4r41l0!

Javier Milei em vídeo para campanha presidencial argentina em 2023

Afinal, quem precisa de saúde, educação, seguridade social pública? Ciência, cultura, esportes? Somos felizes porque cumprimos metas!

Se o Estado máximo do Comunismo reduziu o ser humano a uma coisa ou escravo, o Estado mínimo do livre-Capitalismo não faria diferente. O homem e a mulher viveriam para trabalhar ou sofrer em um sistema sem direitos.

Hoje, a diferença é que não há no Brasil ameaça Comunista real, e se no futuro houver vamos derrotá-la da mesma forma que enxotamos o golpista do Governo, ao passo que a ameaça desse Capitalismo selvagem de Estado mínimo é tangível.

Se o Estado da maneira que está hoje precisa de ajustes, a ideia de que o Capitalismo sem freios seria o melhor dos mundos é simples ilusão, utopia, que quando apreciada em seus resultados se revelaria distópica, catastrófica, criminosa.

Talvez você queira saber o que aconteceu com o João e a Maria do supermercado, né? Eu vi a Maria vendendo (ilegalmente) balas nos vagões de metrô de São Paulo, e o João vagava pela metrópole revirando lixeiras para coletar latinhas para vender para reciclagem – não há como se locomover na cidade sem cruzar com eles (e parece que também não há como descartar o lixo corretamente).

chela » Mundo » Sociedade » A água, a vida o Estado e a privatização da Sabesp

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *