Esta frase é atribuída a Jesus no versículo 4.17 de Mateus, evangelista que a coloca primeiro nos lábios de João Batista em 3.2.

Se você clicou nos links das passagens, viu que a frase de João e Jesus está “Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus” na tradução da ACF, bem como na da grande maioria das outras bíblias de todo o mundo.
Ao passo que a variação da segunda parte da tradução é só uma questão de preferência semântica, a primeira palavra, “Arrependei-vos”, não.
Trata-se do verbo corresponde à palavra grega metanoia (μετάνοια). No Cristianismo, ela foi corrompida ou direcionada para quase sempre significar arrependimento, que está ligado ao pecado e à culpa. Mas o significado original de metanoia é mudança de percepção, mudança de mente ou reflexão posterior. Essa é uma das palavras-chave do caminho de Jesus, e sua diferença para a interpretação cristã explica muito da diferença entre os dois caminhos.
“Arrependei-vos”: uma interpretação teológica
A palavra (mal) traduzida como “arrependei-vos” é metanoeite (μετανοεῖτε), 2ª pes. do plural do presente do imperativo (ou do indicativo) ativo do verbo metanoeo (μετανοέω), que significa mudar a mente, a percepção, o olhar, ou repensar, olhar ou perceber depois ou mais tarde, mudar de ideia ou de propósito.
➡️ meta- (μετᾰ-) (como prefixo): (mais frequente) referente a mudança de posição ou condição; inversamente; depois; atrás.
➡️ noeo (νοέω): perceber, ver, notar, pensar, supor; conceber, considerar.
O substantivo derivado desse verbo é metanoia (μετάνοια): originalmente “mudança de percepção”, “mudança de mente” ou “reflexão posterior”, e mais tarde “arrependimento”.
Arrepender-se do quê?
Acontece que o “arrependimento” ou “arrepender-se”, psicológica e existencialmente falando, se dão por um processo muito diferente daquele da mudança de mente. O arrependimento implica um “pesar ou lamentação pelo mal cometido” e está ligado aos princípios “religiosos” ou dogmáticos do pecado e da culpa.
Mudar a mente não implica necessariamente se arrepender de algo. O processo mental do arrependimento seria um acréscimo, que pode ou não acontecer, dependendo das circunstâncias, e a tradução por “arrependimento” corrompe o sentido original da palavra metanoia.
Essa mesma raiz é repetida diversas vezes no Novo Testamento; sempre que você encontrar uma palavra com a raiz “arrepend” na traduções, é quase certo que a palavra no texto grego original provém do verbo metanoeo ou de termos com sua raiz. Você pode perceber que em muitos desses trechos uma tradução como “mudar a mente”, “mudar a percepção” ou “transformar-se” seria preferível. Mesmo o termo “converter”, hoje carregado de sentido religioso, considerando seu significado original – de transformação – seria melhor empregado do que “arrepender”, que é uma deturpação do seu sentido original.
Em 2006, um grupo ecumênico de acadêmicos publicou um estudo sobre “arrependimento” na Bíblia e na Igreja. Após “um exame completo dos escritos judaicos helenísticos”, o estudo descobriu que para os judeus que viviam na época de Jesus, “arrependimento” significava “uma mudança fundamental no pensamento e na vida”.
Wikipedia » Metanoia (teologia)
Isso significa que o uso de “arrependimento” ou metanoia naquele tempo também não tinha o significado que damos hoje. O artigo da Wikipedia explica bem toda a questão.
Um exemplo bastante claro de como metanoia era utilizada em um de seus sentidos etimológicos simples, como “reflexão ou meditação posterior”, muito longe de “arrependimento”, aparece na Septuaginta (Bíblia hebraica traduzida para o grego entre os séc. III e I AEC), quando a palavra foi escolhida pelos tradutores em Provérbios 14.15:
O simples acredita em cada palavra, mas o homem prudente se entrega à meditação posterior [metanoian].
Provérbios 14.15 (Septuaginta) / Versão em Grego
Agora imagine como ficaria o dito sapiencial com arrependimento: “O simples acredita em cada palavra, mas o homem prudente se entrega ao arrependimento.” – o contraponto de ser crédulo é refletir, não arrepender-se! Mas o triste de se constatar é que se esse versículo estivesse em um manuscrito original do NT, “metanoia” seria quase certamente traduzida por “arrependimento”, não importa quanto isso ferisse o sentido o provérbio – pois é isso que acontece na maior parte das traduções dessa palavra.
Isso é mais significativo do que parece, pois Jesus e João provavelmente falavam em aramaico ou hebraico, não em grego. Se se quisesse traduzir alguma ideia parecida como “meditação ou reflexão posterior” ou “mudança de mentalidade” para o grego, a palavra usada seria metanoia. Pois bem, de posse dessa palavra, a tradição posterior pôde interpretá-la conforme sua própria visão religiosa.
Mesmo em textos já carregados da própria teologia que ajudou a incorporar o sentido de “arrependimento” à palavra, como o livro de Atos dos Apóstolos, vemos que em algumas passagens ela ainda é melhor entendida no seu sentido original, como é o caso de At 20.21 que as traduções da ACF e da ARC apresentam:
Testificando, tanto aos judeus como aos gregos, a conversão [metanoian] a Deus, e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo.
Atos 20.21 (ACF e ARC)
Essa tradução utilizada, “conversão”, um “voltar-se para” Deus, soa muito mais natural do que “testificando … o arrependimento para com Deus”, como lê a ARA e a conceituada NRSVUE.
Não há um homem que seja tão errado ou equivocado que ao menos algumas vezes não esteja certo (e vice-versa), e possa nos ensinar algo. Olavo de Carvalho exemplificou, em sua antiga coluna no jornal Zero Hora, o uso de “metanoia” na filosofia de Sócrates, significado o “giro da direção da atenção desde fora para dentro”.
Indo à fonte
Agora que argumentamos como “arrepender-se” é uma interpretação (para não dizer invenção) meramente teológica e dogmática que mata o sentido original de metanoeo, vamos falar sobre este.
Essa palavra aparece logo no início do primeiro dos quatro evangelhos canônicos a ser escrito, Marcos, no qual provavelmente Mateus baseou seu relato.
Apareceu João Batista no deserto, pregando um batismo [mergulho na água] de transformação [metanoias] para libertação [ánesis] dos enganos.
Marcos 1.4
A tradução que encontramos nas bíblias: “…pregando o batismo de arrependimento, para remissão dos pecados.” (ACF) está em ao menos um ponto, na palavra metanoia, coberta de dogma. Em seguida, “remissão” ou “perdão” pode ser traduzida também por “libertação” ou “liberação”, e mesmo “pecados” por “erros” ou “enganos”, ambas as escolhas de formas mais originais do que as da bíblias, contando também com o mesmo argumento que usamos para metanoia.
“Não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão.“
O papel purificador, limpador e renovador da água é da experiência universal humana e, na Bíblia, é ilustrado em Ez 36.25.
Nunca saberemos o que esse João, “que andava vestido de pelos de camelo, e com um cinto de couro em redor de seus lombos, e comia gafanhotos e mel silvestre” (v.6), realmente estava apregoando com seu batismo.
A igreja sempre leu João Batista e Jesus de acordo com seu dogma, mas, existencialmente, espiritualmente falando (para não falar semanticamente), sua leitura é equivocada.
Exploramos a expansão de ditos de João Batista feita em Lucas 3 e Mateus 3 em “Produzi, pois, frutos dignos da transformação” (João Batista) (Mt 3.8 = Lc 3.8a)
Certo é que, após seu batismo por João e retiro no deserto, Jesus volta dizendo:
O tempo está cumprido, e está próximo o reino de Deus. Mudai vossa percepção [metanoiete] e crede na boa nova [euangelio].
Jesus de Mc 1.15

Evangelion [εὐαγγέλιον] significa boa(s) nova(s) ou boa(s) notícia(s). A palavra posteriormente ganhou o significado pelo qual reconhecemo-la também em sua forma transliterada no português, evangelho – gospel em inglês -, “conjunto dos ensinamentos de Jesus Cristo” ou os livros que os relatam, os “evangelhos”.
Mas aqui, em se tratando do início mesmo do ministério de Jesus onde não havia portanto um “evangelho” consolidado, acreditamos que a melhor tradução seja esta, “boa nova” ou “boas novas”, muito pouco escolhida nas bíblias brasileiras mais populares, mas que foi a opção na do Peregrino (“crede na boa notícia”), a exemplo da internacional NRSVUE.
Não há notícia mais importante do que a da iluminação, da autorrealização, de perceber que este mundo já é um dos paraísos de Deus. Essa é a mensagem dos iluminados.
Mc 1.15 provavelmente foi a fonte da passagem-tema de nosso artigo, Mt 4.17, para a qual vamos nos voltar agora.
Para aprender o grego bíblico de forma prática, recomendamos a Gramática Fundamental de Lourenço Stelio Rega e Johannes Bergmann.
Para auxílio na tradução do grego, conheça o site Bible Hub (original em inglês) / tradução.
“Mudai vossa percepção, pois o reino dos céus está próximo”
Como dissemos, a palavra principal do versículo é do verbo metanoeo: mudar a mente, a percepção.
Metanoia é uma das palavras-chave do caminho de Jesus. Como dissemos, no Cristianismo, ela foi corrompida para arrependimento, ligado ao pecado e à culpa, mas o ponto espiritualmente mais importante não é nem esse.
É que o arrependimento, o pecado e a culpa estão ligados ao ego, ao sentido de separatividade entre você e a Criação, ou entre você e Deus. E esse senso de individualidade é uma ilusão.
Mude sua percepção do ego, da sua individualidade, para o Todo e você perceberá, aqui e agora, um dos reinos dos céus.
Satori é samadhi, o primeiro samadhi, a entrada para o samadhi, para outro mundo, totalmente desconhecido para você, totalmente inimaginável para você, nem sequer sonhado por você. Esse mundo existe justo ao lado deste mundo. De fato, você não precisa dar um único passo: justo ao lado deste mundo, bem nele, ele existe. Basta mudar o seu ponto de vista, outro mundo se revela. O mundo é seu ponto de vista, nada mais. Este mundo é feio porque seu ponto de vista é errôneo. Se este mundo é apenas uma angústia, um inferno, é porque seu ponto de vista é errôneo. De fato, o mundo não é um inferno: é você quem cria o inferno ao seu redor; é sua projeção.
Osho, em The Grass Grows by Itself, traduzido da versão em espanhol La hierba crece sola, cap. 6
Metanoia
A nossa mente com seus sentidos está normalmente voltada para fora: é uma metanoia quando mudamos essa direção, direcionamos a atenção para o interior. É meditação. Metanoia então pode ser um retornar, voltar para dentro de si mesmo, para “casa”.
As escrituras, Paulo, o Apocalipse, Jesus, este site, e mesmo um Deus, tudo isso está fora.
Em última instância, mesmo a oração pode ir se tornando menos exterior, menos articulada, menos palavreada, e mais interior, quieta; a oração se transforma em meditação ou em comunhão com Deus, que os indianos chamam às vezes por esse samadhi citado por Osho.
Quando o interesse exterior se aquieta, você começa a olhar para si mesmo e a se perguntar quem é este ou esta que está olhando. Enquanto você estiver buscando fora, você estará no mundo. Quando estiver centrado, quando “perceber” que você existe e que a sua experiência existencial é tudo o que pode existir, pode descobrir a riqueza que carrega na sua alma, no seu ser.
O tema do reino de Deus dentro de nós deve ser melhor exposto futuramente.
“Aonde quer que você vá, você encontrará ser, consciência e amor.”
Nisargadatta Maharaj
Outra metanoia significativa é aquela da mente para o coração, do cálculo, da competição, para o amor, do acumular para o compartilhar – como você pode imaginar, esta é uma das metanoias mais perigosas!
É metanoia também quando nos tornamos sexuais – induzidos por hormônios, comportamentos ou situações, pensamos “sexualmente”, muitas vezes deixando a cabeça (e até o coração) de lado. É também um “estado alterado de consciência”.
Estados alterados de consciência
Nós estamos acostumados com certa descrição do mundo, com o mundo que a mente “escolheu” processar.
Os estados alterados de consciência ou de mente constituem outras formas de metanoia.
Um exemplo é aquele experimentado quando ouvimos uma música que gostamos, sobretudo quando estamos dançando, fluindo ou viajando com ela. Muitas vezes a mente analítica deixa de existir, o mundo manifestado deixa de existir, e você só está ali, no seu êxtase.
Também experimentamos estados alterados em meditação, em contemplação ou ainda quando auxiliados por plantas de poder, como a Ayahuasca.
Às vezes a mente e este mundo simplesmente “param”. E é nesses momentos que temos mais contato com nosso verdadeiro ser, com o divino em nós, com o céu que na verdade nunca esteve longe – é impossível ele estar em outro lugar do que aquele em que você está, pois o tempo sempre é agora: mudai vossa percepção, pois o reino dos céus está próximo.
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